domingo, 8 de março de 2009

Suspeito - Segundo Capítulo

1
Os rumores se espalharam rápido pela rua St. Jeremy. Bocas tagarelavam umas com as outras na calçada, em suas casas, até mesmo de janela para janela. Por duas noites seguidas, a polícia aparecera na Paragon. Esta noite, as únicas coisas que haviam mudado eram a quantidade de viaturas e a calma (ou a falta dela) do chefe Belmont. Sua testa estava cheia de gotículas de suor, suas sobrancelhas firmemente franzidas, e sua boca torta fechada ao redor de um cigarro, dos quais fumava um atrás do outro.
As sirenes luminosas de dois carros giravam em frente à Paragon. Cerca de três policiais estavam aos arredores, fazendo perguntas aos moradores que haviam saído às ruas e aos passantes mal informados. Ninguém havia visto o rapaz de jaqueta preta ou ouvido a moto azul.
Dentro da loja, no segundo andar, Lílian estava sentada na cama de Adam, cercada pelo próprio, seu pai e seu irmão.
Adam estava afastado, dando-a espaço para responder às perguntas do pai. Olhava a movimentação lá embaixo pela fresta da persiana semi-aberta e desgostava cada vez mais. Ontem, os curiosos tinham ficado em suas moradias devido à alta hora em que a polícia viera. Hoje, ainda 20:45, cada vez mais insensíveis vinham para perto da loja perguntar a si mesmos e uns aos outros sobre suas especulações.
— Ouvi dizer que invadiram a loja ontem, mas não levaram nada. – disse uma senhora, que sem notar, ainda segurava o controle remoto de sua televisão. Era uma figura risória no ambiente tenso que havia se estabelecido ali.
— Será que voltaram pra levar o que não conseguiram? – propôs uma mais jovem, provavelmente moradora da república de estudantes duas residências depois da loja de Adam.
— Sempre suspeitei dessa loja... Geralmente antiquários guardam coisas valiosas, apesar de não deixarem nada à mostra das vitrines. – disse um senhor, enfiando-se entre outras duas pessoas. Tinha um ar de intelectual, o que tornava provável que suas teorias se tornassem o centro das atenções. Cabeças fracas como as das fofoqueiras da vizinhança adorariam ouvir alguém mais inteligente tagarelar, só para poderem elas mesmas tagarelarem com outras de sua laia, bancando as inteligentes.
Peter chegou ao quarto com outro copo de água com açúcar. Nunca tinha visto sua caçula tão nervosa quanto agora. Ela estava terminando de contar a história para o pai, a mesma história que ele e Adam já ouviram duas vezes enquanto esperavam as autoridades chegarem.
—... Ele começou a perguntar onde eu morava, se era perto, se eu conseguia chegar rápido... Eu fiquei super assustada! Ele estava com uma cara tão horrível, tão... Ameaçadora... Parecia uma pessoa completamente diferente.
Martin Belmont respirava fundo. Seu rosto parecia ficar cada vez mais vermelho, como o de Lílian estava, mas de raiva.
— Vocês dois não desceram para ver o que aconteceu? – perguntou aos rapazes ao redor, severo como fossem os culpados.
—Bem que nós quisemos ir atrás desse cara! – disse Peter. Como o pai, seu instinto protetor também estava à flor da pele no momento, ambos com raiva do dito “motoqueiro”.
— E claro que eu não ia deixar, pai! – retrucou a pequena, a voz atingindo uma nota aguda demais para ela. – Ele podia estar armado! E, além disso, ele fugiu quando eu comecei a pedir ajuda...
— Covardão. – disseram pai e filho, em conjunto. Adam teria sorrido se não estivesse tão perplexo. Quando chegaram, a moto estava saindo da rua, na direção oposta à esquina da locadora. O motoqueiro dera a volta no quarteirão inteiro só para alugar um filme?
— Vou colocar avisos pra procurarem esse tal motoqueiro de jaqueta. Moto azul, cara e barulhenta. Não vou esquecer esse canalha... – disse Martin à filha, o rosto dela firmemente seguro nas mãos pesadas do pai. Levantou-se e fitou Adam e Peter por breves momentos. – E vocês dois, irresponsáveis, o que passou na cabeça de vocês pra deixarem-na sair sozinha numa noite dessas?
Os dois não retrucaram. Martin já estava nervoso demais com o fato de sua filha quase ter sido abusada. Além de que não seria fácil argumentar com o chefe de polícia. Ele trabalhava com argumentos.
— Eu confio em vocês dois pra bancarem homens de verdade quando estiverem com minha filha! Estou decepcionado com você, Peter, pensei que já tivéssemos conversado sobre ser responsável! E Adam, eu o considero família há anos e esperava que você tivesse um pingo a mais de consideração comigo, minha mulher e minha filha!
As palavras chave do curto sermão atingiram aos dois no estômago. Martin Belmont era assim. Não se demorava em suas reclamações, mas sempre chegava facilmente onde queria.
— Pai, não seja... – começou Lílian.
— E você, mocinha, vamos pra casa agora! Peter, já pro carro! – ordenou.
Peter e Lílian queriam muito ficar ali com o amigo, como planejado, mas não haveria jeito de entrar numa negociação com Martin agora. O chefe de polícia saiu às pressas do quarto, descendo pesadamente pela escada de ferro. Peter e Lílian olharam para Adam, que deu de ombros, um meio sorriso no rosto.
— Vou ficar bem... – disse, indo até Lílian para abraçá-la.
A despedida dos dois foi curta, pois o pai logo abaixo chamava apressado. Adam deu-lhe um beijo no topo da cabeça e deixou-a descer. Peter foi até ele e os dois apertaram as mãos, se abraçando em seguida.
— Cuida dela direito hoje. Ela parece bem abalada. – aconselhou-o.
— Pode deixar... – disse se afastando. – Se nós não aparecermos amanhã, pode dizer pra Amanda...
Peter não precisou completar a frase.
— Claro, claro.
Peter desceu.
Adam ficou em seu quarto de braços cruzados, olhando pela janela. Peter entrou em seu Camaro e saiu dirigindo atrás da viatura do pai, onde Lílian entrou. Com a casa em silêncio, sua mente começou a deslizar por todo tipo de pensamentos. Tentava imaginar o tal motoqueiro com a descrição pouco exata de Lilly. Seria precipitado de sua parte tentar relacioná-lo a alguém que conhecesse pela descrição pobre... A questão da locadora ainda o perturbava levemente; por que o motoqueiro voltou? Será que realmente estava apenas de olho em Lílian?
Os moradores na rua começaram a se dispersar aos poucos, saindo às duplas ou grupos, mas nunca sozinhos. Ainda falavam como se alguém quisesse ouvi-los. As viaturas já tinham se retirado, mas ainda havia pessoas em massa ali, em frente à loja de Adam. Desistiu da janela quando começaram a olhá-lo demais. Caminhou arrastando os pés para a cozinha, onde notou que o bastão de baseball ainda estava recostado na lateral da geladeira. Seus lábios se curvaram fracamente num sorriso, e ele foi até o fogão, pensando no que faria para jantar. Fritar hambúrgueres de novo não soou uma idéia saudável pela terceira vez seguida, muito menos pedir uma pizza. Decidiu comer salsichas cozidas e arroz.
Bufou de decepção e raiva quando viu que tinha apenas frutas, comida instantânea e água em sua geladeira. Decidido a não comer nada “pronto”, pegou algumas frutas e separou o liquidificador. Vitamina parecia saudável o suficiente. Está vendo, vô? Frutas e leite ao mesmo tempo!
Adam mal terminara de descascar a maçã quando seu telefone tocou, no quarto.
Deixando a maça meio descascada sobre o mármore da pia, caminhou de volta ao quarto. Quando sua mão repousou sobre o telefone, não pôde evitar pensar que não haveria ninguém do outro lado. Exatamente como na noite anterior.
— Alô? – disse, hesitante.
— Adam! Cara, você precisa vir pra cá! Estamos na esquina, na locadora, vem agora! – era Peter e parecia agitado.
— Calma, Pete, o que aconteceu? – respondeu, sentando-se na cama.
— Não dá pra falar bem por telefone, mas, cara, o homem da locadora... Vem logo, rápido!
O amigo desligou, deixando Adam com a curiosidade a roer seu peito ali, sentando no colchão velho que cedia quase completamente com seu peso. Levantou-se devagar, ainda processando o que tinha ouvido. O que poderia ter havido com o homem da locadora?
Apressando-se gradualmente, ele desceu descalço até a loja, lembrando-se como chovia lá fora. Ele subiu novamente, xingando, pegando seus tênis ao lado da escada.
Apressou-se pela rua, sentindo o frio do qual Lílian falara, mas sem se importar muito. Sua camisa de mangas branca e encardida cobria toda a sua parte de cima, mas o frio não o abalava muito de qualquer forma. Seu corpo estava quente de excitação. Estava preocupado.
Não foi difícil passar pela multidão. Ela não mais se concentrava de fronte a Paragon. Havia padrão curioso e óbvio entre as pessoas que iam embora, todas no mesmo sentido, todas na mesma direção que Adam; todas iam para a locadora, onde as duas viaturas e o Camaro verde escuro de Peter estavam estacionados. Havia um cordão de isolamento, a famosíssima faixa amarela de “Não Ultrapasse” delimitando a área da frente da locadora, inclusive ela própria e metade da rua. O Camaro estava na esquina oposta. Peter estava do lado de fora, recostado no capô, abraçado firmemente na irmã, que tinha o rosto escondido em seu peito. Estava chorando, sem dúvida. Os policiais não estavam ao redor, então era inevitável que os curiosos insensíveis se aproximassem pra perguntar.
Adam se aproximou o suficiente para ouvir ao mesmo tempo em que um homem na casa dos 30 anos começava a perguntar. Ele parecia nem mesmo ouvir os soluços de Lílian.
— Que confusão essa noite, hein? – começou o homem, como quem não quer nada. – Primeiro a Paragon e agora isso?
Peter estava furioso, mas parecia estar engolindo em seco para não criar um caso na frente de sua irmã. Ele recusou-se a responder. Suas sobrancelhas estavam unidas em uma só e seu cabelo solto, o que o tornava muito menos receptivo do que deveria parecer normalmente.
Notando que fora ignorado, o homem tentou outra abordagem.
— O que será que aconteceu, alguém deve saber de alguma coisa... – disse, outra vez tentando soar casual. Tristemente, todos ali sabiam que os dois eram filhos do chefe de Polícia e mais óbvio ainda que soubessem de algo.
Peter virou o rosto sério e maciço para o inconveniente. Suas mechas cacheadas que caiam de ambos os lados do rosto lhe deram uma sombria imponência naquele momento.
— Alguém matou o dono da locadora. Há pouquíssimo tempo. Uma mulher entrou e achou o corpo atrás do balcão. – sua voz, ao contrário de sua expressão, era instável. – Agora pode ir contar pra quem quiser, mas sai da minha frente...
Ele viu Adam se aproximar por trás dos ombros das pessoas e se privou de terminar a frase. O antiquário parecia ter ouvido, pois não tinha expressão saudável no rosto.
— O quê?! – perguntou Adam, pondo a mão no ombro do amigo e passando as pontas dos dedos pelos cabelos da pequena Lilly.
Peter respirou fundo, por um tempo, acalmando-se. Os olhos estavam fixos na locadora, mas a voz parecia mais controlada.
— O dono da locadora... Que a Lílian mencionou lá. Tá morto. Não sei como foi, nem quem foi, mas não tem como negar.
O ar fugiu dos arredores de Adam por um momento, deixando-o à beira da náusea. Morto? Mas como?
Lílian chorava como Adam nunca a vira chorando. Já chegou a notar certas lágrimas ocasionalmente em situações realmente tristes, mas soluços como os de agora eram novidade para ele, e o inquietavam.
— Lílian... Lílian acha que foi o... – Peter não terminou a frase, nem precisou.
O motoqueiro... Faz sentido.
Adam passou a mão pela testa, notando que estava úmida com gotículas de suor. Recostou-se no carro ao lado de Peter, esfregando as mãos. Em silêncio ali, ele retomou alguns pensamentos.
Ele se aproxima de uma moça na locadora. Uma moça bonita,sozinha, receptiva. Que não vai negar conversinhas com alguém bonito como ele. Ele banca o simpático, o intelectual, o atencioso, mas só está querendo umazinha para a noite. Ele paga para ela, como um cavalheiro, mas por algum motivo, perde as estribeiras e decide puxá-la pra fora pra terminar logo com aquilo. O dono da locadora percebe suas intenções e a garota foge. Tudo dá errado. Ele finge ir embora, mas volta para silenciar o dono da locadora. Eles discutem, brigam, ele tem uma arma e acaba por usá-la. Fim de história.

2
As horas da noite foram passando sem que nenhum dos três se afastasse do carro. A multidão já quase completamente dispersa não incomodava mais e quem restava parecia estar realmente interessado ou preocupado com o caso. Família, amigos, conhecidos, ou supostas testemunhas, o clima ali era tenso, agora que a chuva havia parado e os relâmpagos haviam começado. Se a noite fosse como uma das outras quaisquer da cidade, dali a algumas horas uma neblina ia repousar sobre a região. Os policiais pareciam saber disso, apressando-se das formas que lhe eram possíveis. Outras duas viaturas chegaram conforme a notícia do caso corria pelas centrais. Ou isso ou Martin tinha pedido cobertura para poder se retirar pela noite.
O chefe de polícia veio caminhando lentamente, com um cigarro pendurado no canto da boca, a fumaça sumindo claramente visível. Tinha uma expressão cansada e obviamente preocupada.
— Vamos, crianças... – disse, abrindo a porta do Camaro de Peter e sentando-se ao banco do motorista.
— E a sua viatura...? – perguntou Lílian, que já se mantinha controlada há cerca de 40 minutos.
— Eles vão cuidar disso, filha, vamos logo. Estou exausto... – Lílian não se despediu de Adam, mas ele não ligou. Estava absorto demais.
Lílian entrou ao lado do pai e Peter abriu a porta de trás.
Martin se debruçou pela porta de vidro aberto e chamou Adam para mais perto.
— Adam, se quiser pode ir dormir conosco esta noite. As coisas vão ficar movimentadas aqui por um tempo. – a voz estava mais calma, mais tranqüila e absolutamente desculposa.
Ele esfregou as mãos, pensando... Não queria ser incômodo para Martin e para os amigos, e provavelmente a noite seria um pouco instável na casa do Belmont. Marta deveria estar morta de preocupação. Ficar em casa seria uma escolha mais tranqüila e provavelmente ele dormiria melhor.
— Obrigado, Martin, mas acho que prefiro ficar em casa... Encontro com os dois na escola amanhã, se eles forem.
— Eu vou... – disse Lílian, com o cinto já colocado, braços cruzados sobre o peito, olhos no porta-luvas.
Peter, Adam e Martin desviaram brevemente os olhares para a moça.
— E, outra coisa... – ele parecia um pouco constrangido por dizer, mas não demorou-se a prosseguir. – Desculpe por ter sido duro com vocês, rapazes.
Ele olhou pelo retrovisor para Peter e olho no olho para Adam.
— Sei que estão tão chateados e furiosos quanto eu... E que não fizeram por querer. Espero que entendam.
Adam nunca havia convivido o suficiente com Martin para saber o suficiente sobre seu comportamento. Via apenas o lado policial e paterno que ele mostrava constantemente, mas nunca havia presenciado um momento de guarda baixa do chefe de polícia. Estava surpreso pelas desculpas que ele pediu. Peter, pelo contrário, parecia já esperar pelos arrependimentos do pai pela rudeza. Ele se inclinou pelo banco da frente e pôs a mão no ombro do pai.
— Tudo bem, pai... – Peter olhou para Adam, ponderando se deveria insistir para ele dormir em sua casa.
Decidiu deixá-lo, por fim. Adam sempre fora um rapaz caseiro, como seu avô, e a não ser que fosse necessário, ele sempre preferiria dormir em casa.
— Hum... Martin, posso... Falar com você, um instante? – pediu Adam.
Martin levantou uma sobrancelha, olhou rapidamente para Lílian e Peter e então desatou o cinto, abrindo a porta. Os dois se afastaram poucos metros.
— Sei que o senhor não deve poder falar conosco sobre isso, mas... O que foi que aconteceu? Com o homem da locadora? – perguntou, esfregando as mãos, sem tentar parecer nervoso pela voz.
Martin suspirou.
— Filho, sabe que eu não devo passar informações para...
— Mas nós somos testemunhas. Eu e Peter. – Adam não queria ter de usar argumentos apelativos, mas precisava saber o que aconteceu. – É óbvio que esse caso vai ter uma repercussão e mais cedo ou mais tarde nós três vamos ter que dar nossos depoimentos. Uma hora ou outra vamos saber.
Martin não respondeu, piscando constantemente. Nunca tinha visto o amigo de seu filho ser tão incisivo, tão maduro. O chefe de polícia sorriu.
— Bom... Obviamente nosso primeiro suspeito é o motoqueiro, o que me torna mais e mais nervoso a respeito do que aconteceu com Lilly hoje...
— A mim também. – acrescentou Adam, mas Martin não se interrompeu.
— Mas ainda há coisas que precisamos investigar. É cedo para tirar conclusões e ainda não vamos dizer nada aos repórteres. Nem você deve.
— Claro! Hum, Martin... Acho que já sei, mas como ele morreu? – o antiquário aproveitou a abertura na guarda de Martin para perguntar o que podia.
Martin engoliu em seco, desviando o olhar para o lado, para a locadora.
— Porque eu não ouvi nenhum tiro... – acrescentou Adam, vendo a demora na resposta do policial.
Martin voltou o olhar para Adam, uma sobrancelha erguida.
— O que te faz pensar que ele foi baleado, filho? – perguntou, e nesse momento Adam teve absoluta certeza de que estava certo. Martin estava apenas tentando desviar suas suspeitas da verdade.
— Bom, foi só que imaginei toda a cena na minha cabeça e... – ele foi interrompido pela buzina do Camaro. Lílian parecia impaciente, debruçada sobre o volante.
— Vá dormir, Adam, você está péssimo. – disse Martin. Era a primeira vez que ele conversava com Adam de igual para igual, de homem para homem. Ele sorriu de lado. – Todos estamos, certo? E esqueça essa história de tiro, ok, garoto? Tente visualizar de outro jeito.
Adam concordou com a cabeça, sorrindo. Eu estava certo, então. Baleado.

Voltando a pé para casa, começou a achar que talvez tivesse talento para esse tipo de coisa. Em menos de 2 minutos conseguira visualizar grande parte do que os policiais deveriam estar querendo saber. Estava um tanto orgulhoso de si, perdido em pensamentos distraídos quando um homem o abordou de frente. O antiquário sobressaltou-se com a aproximação. Era um homem de seus 25, 30 anos, vestido com roupas um tanto formais para as 23:30 da noite. Parecia ter acabado de sair de um escritório. Tinha um lápis comicamente preso atrás da orelha, um bloco de anotações e um gravador numa mão, um guarda-chuva na outra.
— Perdão, mas você é o Sr. Savage? Adam A. Savage, dono do antiquário? – ele fez a pergunta rápida e roboticamente, como se fosse decorada.
O rapaz hesitou por alguns momentos, mas terminou por afirmar com a cabeça.
— Prazer, Edmund Düller, The County Journal, se importa se eu lhe fizer algumas perguntas? – novamente, despejou as palavras decoradas com muita empolgação. Associando o nome aos traços faciais, ele realmente parecia ser germânico. Tinha a pele, o cabelo e os olhos muito claros.
Um jornalista, então. The County Journal era o jornal mais lido da região inteira, não só em Roule County como também nas províncias e condados vizinhos. Parecia ser importante.
— Sr. Düller, certo? – Adam esforçou-se para pronunciar corretamente. – Não acha que está um pouco tarde?
— Não, por favor, não se incomode comigo, isto vai tomar apenas um minuto do seu tempo! Vejamos, qual sua relação com a vítima da noite, Osmar Tellore?
Adam não reconheceu o nome imediatamente.
— Quem?
— O dono da locadora, assassinado hoje! – os olhos azuis quase cinzentos faiscaram conforme a empolgação robótica de sua voz crescia.
— Ahn, nenhuma eu acho. Não sabia nada sobre ele, apenas alugava filmes. –mal ele terminara a resposta, outra pergunta já estava sendo feita pelo auto-falante que era a boca de Düller.
— Você acha que alguém poderia ter um motivo substancial e convincente para matá-lo? Se sim, esta pessoa seria da cidadã de Roule County ou uma forasteira?
As perguntas iam ficando cada vez mais incisivas. O jornalista estava quase tão perto de Adam que o hálito dos dois se confundia no ar. Quando o toque de um telefone quebrou o silêncio entre uma frase e outra do alemão, os dois viraram-se para a Paragon.
O telefone tocava lá de cima. Adam aproveitou a situação para jogar desculpas e apressar-se para casa.
— Foi mal, é o meu telefone. – disse, desvencilhando do jornalista e apressando passos para a porta de vidro da loja. Entrou rapidamente e fechou a porta, virando a plaquinha para certificar-se de que fechara a loja. Foi até o balcão e debruçou-se sobre ele, pegando o telefone do outro lado.
— Alô? – respondeu arfando.
— Ah, graças a Deus, Adam, consegui te ligar primeiro! – era uma voz feminina e exaltada que ele não reconheceu.
Com o telefone pressionado no ouvido com o ombro, ele puxou a manga da blusa para ver as horas. 23:37. Seus olhos encontraram o jornalista Düller passando pela loja, acenando em despedida. Adam acenou de volta, arregaçando as mangas pelo calor que sentia repentinamente. A loja estava bem quente em comparação com o exterior.
— Quem fala? – perguntou, sem nenhuma credibilidade com a moça do outro lado da linha.
— É a Ingrid, seu bobo! Você está bem? – a voz parecia mais calma, e Adam pôde jurar que ouviu uma voz masculina do outro lado, falando aos sussurros com ela. Obviamente ele não se preocupou com isso. Era estranho a amiga estar ligando a esta hora. Na verdade, era estranho apenas que ela estivesse ligando.
— Tô bem Ingrid, a polícia provavelmente vai ficar...
— Não é isso! Olha... – ela ficou em silêncio, e o antiquário ouviu novamente os sussurros do outro lado. – Eu tenho um recado pra você...
— Diga.
— Não atenda seu telefone até... Até que eu diga que possa. Ok? Atenda só o celular e mesmo assim, só se você conhecer o número. Entendeu, Adam?
Ele ficou em silêncio por um tempo. Não se agüentou e deu uma risadinha.
— Ingrid, sinceramente, de todas as pessoas, eu nunca imaginei você fazendo esse tipo de piada.
— Não seja idiota! Eu, de todas as pessoas, claramente não faria uma piada disso! Adam não atenda o telefone, ok?
— Até você me mandar atender de novo, certo? – perguntou, desdenhoso.
— Adam, por favor. Parece loucura, mas me escute... – a voz era de súplica, mas Adam não notou. Não achava que Ingrid pudesse fazer este tipo de piada, mas associou a voz do outro lado da linha a seu irmão mais velho, Terrance, jogador do time de basquete e seu amigo. Era típico dele fazer este tipo de piadas, principalmente agora num momento em que Adam poderia estar com medo. Um assassinato aqui na minha rua, por que não tentar me assustar?
Ele respirou fundo e respondeu teatralmente.
— Claro, Ingrid, eu compreendo. – ele disse pausadamente, controlando a voz para não se empolgar e rir. – Não vou atender o telefone até que Terrance me mande atender de novo.
Ingrid soltou um gritinho de ofensa do outro lado, o que o levou a explodir numa curta risada.
— Terrance? Adam, o que você acha que meu irmão... Adam, por favor, é sério, eu...!
— Claro, Ingrid, claro. – ele desligou.
Estava mais calmo agora, bem-humorado. Devagar, apagou as luzes da loja e tirou o telefone de serviço do gancho. Não pelo aviso da amiga, mas porque sempre o fazia antes de dormir.
No andar de cima, foi novamente até a cozinha, sua barriga roncando quando ele lembrou-se de comer. Suspirou frustrado com o que encontrou pelo chão. O liquidificador, antes cheio de leite, agora estava entornado e a gata branca bebia da enorme poça no centro do cômodo. Ela ergueu a cabeça quando ele apareceu à porta e miou baixo, caminhando até ele aos passos cuidadosos. Esfregou-se na perna dele com carinho, mas Adam estava recostado no portal, imóvel, apertando o nariz com as pontas dos dedos.
Decidido a tomar uma providência com os gatos agora, limpou em dez minutos o leite derramado e pôs a gata para fora. Sentindo o cansaço começar a pesar, foi até o banheiro e começou a preparar seu banho quente, vagarosa e preguiçosamente.
Para sua quase-surpresa, o telefone em seu quarto tocou. Até que ele fechasse a água para não transbordar a banheira, alguns toques já tinham passado. A torneira velha e emperrada custou-lhe muito tempo.
Caminhando de volta para o quarto às pressas, descalço, teve o azar doloroso de bater o dedo mínimo do pé no portal do quarto. Ele quicou sobre um pé só, xingando sem fazer sons, apoiado na parede e massageando como podia. Mancando, foi até seu telefone e sentou-se na cama para atender. Quando o colocou no ouvido, tudo o que ouviu foi o tom de discagem. A pessoa havia desistido.
Que pena, Terrance... Preciso dormir por hoje. Amanhã, pode me assustar como quiser. Ao invés de colocá-lo novamente no gancho, Adam deixou-se o fone repousar na mesa de cabeceira, silenciosamente. Voltando para seu banho quente, riu pelo corredor de casa, lembrando de como Ingrid quase soara convincente ao telefone.

3
Não longe dali, um rapaz chamado Aaron Scuddler desligou seu celular com raiva. Estava na chuva, encostado um poste de lâmpada queimada, na esquina oposta à locadora da rua St. Jeremy. Seus cabelos lisos e curtos estavam colados em seu rosto úmido. Seus olhos castanhos claros eram quase avermelhados na pouca iluminação da noite. Tinha roupas da moda, não caras, mas bem expressivas. Sua camisa preta tinha uma estampa que fazia parecer que garras de uma besta o estavam rasgando por dentro. Sua calça jeans azul escura era completamente surrada e desfiada nas bainhas, e seus tênis esportivos, brancos. Ninguém poderia vê-lo aonde estava, a menos que se aproximassem o suficiente para ver o brilho do visor do celular. Quando ele discou um número e o colocou novamente no ouvido, seu rosto brevemente iluminado mostrava lábios repuxados e dentes trincados. Como se Aaron rosnasse. Exatamente como se Aaron rosnasse.
Após três toques de impaciência, Aaron ouviu a voz familiar de Comp do outro lado.
— Comp! – disse, quase num rosnado.
— Aaron. – a voz do outro lado era mais madura. Calma, porém ansiosa.
— Savage não atendeu ao telefone! – reclamou, em nenhum momento deixando de falar entre dentes.
Um breve silêncio se fez do outro lado.
— Controle sua raiva, Aaron, não queremos problemas.
Aaron tirou o telefone do ouvido, respirou fundo três vezes e esvaziou o ar dos pulmões num berro cheio de adrenalina. Num zoológico, seu berro seria confundido com o rugido de uma fera qualquer.
Ele cerrou os punhos, manchados de sangue e calejados. A chuva não fora forte o suficiente para lavá-lo. Havia manchas de sangue também em seu rosto, em sua camisa.
Quando voltou a falar, sua boca não estava mais contorcida.
— Pronto, Comp. Estou calmo. – e como mágica, ele realmente estava. Sua voz era controlada como a de um ator de teatro e até mesmo soava diferente de segundos atrás.
— Bom. Agora tente me dizer por que ele não atendeu. – pediu. A ânsia em sua voz ainda era presente, mas agora ele parecia mais frustrado.
— Natanael o avisou. Cão fétido, ladrão! – começou novamente, os dentes se forçando uns sobre os outros.
— Aaron, se for perder o controle a cada sentença, acho melhor desligarmos.
Aaron tirou novamente o celular perto do rosto e com a mão restante, acertou um murro em cheio no poste. Um ferimento se abriu e os sangues se misturaram. Fragmentos de concreto voaram esmigalhados de onde o punho dele marcou o poste.
— Desculpe-me, Comp. – novamente, a voz calma reinava.
—Se Natanael o avisou, não podemos fazer nada por hora. Fique nos arredores. Consiga um bom lugar pra dormir e uma boa distração. Não fique por perto de Nate até que eu ligue novamente. Estamos indo para aí.
— Comp, todos vêm? Não precisa disso, eu posso levá-lo sem...
— Aaron, não seja um tolo orgulhoso. Todos nós sabemos o que Nate vai fazer em Roule County. Esse garoto Adam Savage com certeza está na lista dele. E com certeza há mais. Precisamos estar em maior número.
Aaron ficou em silêncio, processando as informações. Sua expressão era fácil de descrever. Era o rosto de um sádico vendo um filme de horror, divertindo-se, quando de repente o mocinho consegue subjugar o malvado, fugindo ileso. Intolerável, inaceitável, ele pensava.
— Não posso simplesmente invadir a loja e matar o garoto? – perguntou, sua última esperança.
— Com o homem da locadora morto, a morte desse rapaz com certeza ia ter uma repercussão muito grande. Natanael ia mudar de cidade e levaríamos meses pra rastreá-lo de novo; mais tempo se ele prosseguir por essas regiões chuvosas. Devemos ficar quietos. Ele não sabe que você está seguindo-o e este é seu trunfo, lembre-se disso.
Aaron pausou o que iria dizer, mas não por muito tempo.
— Então... Então porque ele o avisou sobre não atender aos telefonemas? Ele sabe?
— Nate esta apenas sendo cuidadoso com seus brinquedinhos. Ele não quer que o garoto corra perigo nenhum, por enquanto, é claro. Faça o que eu mandei, Aaron. Vamos pegá-lo, fique tranqüilo a respeito disso. – Comp ficou em silêncio por breves segundos. – Você tem certeza de que ele não sabe que você está na cidade?
— Absoluta. Nate nunca teve um bom nariz pra essas coisas.
— Então está decidido. Vou avisar aos outros.
Os dois desligaram os telefones ao mesmo tempo. Aaron guardou o celular no bolso da calça e abaixou-se, sumindo na escuridão.
Segundos depois, um grande lobo cinzento saiu correndo para fora da escuridão do poste, para dentro da escuridão da noite.

4
Peter não demorou a ir deitar depois que chegou a casa com o pai e a irmã, os três exaustos. Lílian ainda teve de guardar suas energias e nervos para ouvir a mãe à beira do colapso.
O jovem subiu logo as escadas, lavou-se preguiçosamente no banheiro e sem tirar as roupas do dia, caiu direto em sua cama.
Sua noite foi inquieta. A cama estava tão confortável como sempre e a casa tão silenciosa que era possível ouvir o ronco baixo de seu pai. O sono não vinha, contudo. Ele se virou diversas vezes em diversas posições, tentando se concentrar em diversas coisas, sem resultado. Estava cansado, estava com sono, mas não conseguiu adormecer, por mais que mantivesse os olhos fechados. Em certos momentos sentia calor e deixava o cobertor de lado; noutros, sentia correntes geladas de ar subindo pelas pernas e se cobria novamente.
Lá fora, o céu nublado mal dava espaço para a meia lua se mostrar no céu. A chuva fraca caía. A cidade inteira estava adormecida, silenciosa, imersa na úmida escuridão de todas as noites. Quando as pesadas nuvens acinzentadas davam brecha para a lua se exibir tímida, os cães da vizinhança a cumprimentavam, uivando seus lamentos. Carregando seus uivos de um lado para o outro, o vento soprava mais forte essa noite, remexendo as copas pesadas das árvores, agitando seus galhos, fazendo ruídos. O vento por si só já fazia seus sons, aquele grave assovio continuo que tanto se ouvem na piores noites.
O relógio digital da mesa de cabeceira de Peter disparava pela noite, marcando três e meia; quatro e meia da manhã.
Num dado momento, a chuva passou de uma garoa para uma forte tempestade. O barulho das gotas pesadas contra a janela agravou ainda mais sua irritação. Os cães uivando, o vento soprando, as árvores balançando, eram todos incômodos demais. Afundou a cabeça no travesseiro, já se sentindo plenamente acordado. O cansaço já não o abatia e ele sentia o coração bater mais rápido, bombeando a adrenalina para seu corpo. Que raiva! Esse barulho, essa chuva, o calor, o frio! Pro diabo com todos, pensou. Na verdade, estava berrando em pensamentos. Sentia seus dedos fechados com força ao redor do travesseiro, os joelhos dobrados até o peito e sua respiração acelerada e arfante.
Peter abriu os olhos de repente. Estava de manhã. Sem perceber que dormira, colocou-se sentado na cama, surpreso. Passou a mão pelo rosto e sentiu a testa molhada. Encharcada, na verdade. Logo em seguida sentiu o corpo inteiro molhado. Não se lembrava absolutamente do fato de ter dormido. Saltou pra fora da cama com mais disposição do que normalmente tinha quando acordava. Estava sem as calças, apenas de cueca, e isso o confundiu ainda mais. Quando se virou para trás, em direção a seu armário, seu celular vibrou sobre a mesa de cabeceira.
Era Adam. Será que aconteceu alguma coisa? Peter pegou o celular, já abrindo seu armário e procurando algo bem quente para se vestir para a escola.
— Adam?
— E aí, Peter? – cumprimentou Adam. Parecia estar bem.
— Tudo bem, aconteceu alguma coisa? – perguntou Peter, pegando uma calça jeans sem rasgos nos joelhos.
— Não, tudo bem. Só preciso de uma ajudinha, hoje.
— Esqueceu de estudar? – perguntou Peter, tentando vestir a calça, equilibrado numa perna só, com o telefone entre o ouvido e o ombro.
— Estudar?! Pra quê? – A voz de Adam vacilou consideravelmente ao telefone. De certa forma, Peter já tinha certeza de que ele tinha esquecido o exame de hoje.
— Pra Física, seu burro, exame do trimestre, esqueceu? – Peter apoiou-se de costas do armário, subindo a calça por uma perna.
— Merda! – xingou Adam. – Tô ferrado, Pete! Não estudei nada!
Peter riu.
Três batidas na porta de seu quarto foram seguidas pela voz de sua mãe.
— Pete, não demore. Sua irmã já está quase pronta.
— Já vou, mãe, pede pra ela esperar. – respondeu em voz alta, com o telefone afastado do rosto. Quando teve certeza que a mãe não estava mais à porta, voltou a falar com o amigo:
— Relaxa, cara, também não estudei. Vamos fazer juntos, ok?
Adam ficou um tempo em silêncio, parecendo pensar em como pudera esquecer. Nenhum dos dois eram alunos exemplares, mas conseguiam carregar as notas próximas à média, o que não os criava muitos problemas. Esquecer-se de um exame era apenas rotina que os dois pareciam enfrentar pelo menos vezes 3 vezes por semestre.
— OK, OK. Mas não foi pra isso que liguei. – Adam parecia calmo novamente. Tinha a incrível capacidade de ignorar as suas preocupações escolares, coisa que Peter não fazia com tanta maestria. – É que eu esqueci minha bicicleta no...
Mas Adam não conseguiu terminar. Peter estava gargalhando de deboche, uma risada alta e sonora.
— Você e sua bicicleta! – debochou, ainda rindo.
— É sério Peter, não posso ir a pé com esse temporal. Pode me dar uma carona? – pediu.
Peter já abotoava a calça, procurando pelo cinto de fivela dentre as peças de roupa soltas no armário. Precisava tomar coragem para arrumá-lo eventualmente, pois ficava cada vez mais difícil encontrar algo ali.
— Posso.
— Só não vá se esquecer de avisar a Lilly. Não quero apanhar hoje de novo.
— Bem lembrado... – Assim que Peter terminou a frase, encontrou o cinto debaixo de seus coturnos, enfiados dentre duas jaquetas e debaixo de muitas camisas pretas.
Bateram na porta e a abriram em seguida, a cabeça de Lílian apareceu pela fresta. Ao ver o irmão vestido, entrou sem cerimônia, como sempre fazia.
—Pete, já estou pronta. Vai demorar? – perguntou ela, sentando-se ao pé da cama do irmão. O colchão mal cedeu a seu peso. Ela se perguntava como era possível dormir confortável em algo tão duro.
— Já, vou me apressar pra comer. – Ele voltou a falar ao telefone. – Até mais, Adam, tenho que me apressar aqui.
— Ok, tchau.
Lílian levantou-se e acompanhou o irmão a passos longos conforme ele saía do quarto, passando pelo corredor e descendo as escadas. Ao contrário do irmão, ela dormira profundamente, abraçada a dois travesseiros e de pernas dobradas como sempre. Todos os sons, barulhos e ruídos que tanto perturbaram o rapaz no quarto ao lado, nem sequer foram notados pela pequena. Ela acordou aliviada, descansada e renovada. Estava com medo de ter algum tipo de pesadelo, de pensar demais no motoqueiro, no homem que tinha sido morto, ou em como Adam iria passar a noite sabendo que algo assim acontecera tão perto. Quando os primeiros sinais de claridade passaram pela fresta de suas cortinas, ela despertou devagar, sem sequer se lembrar do dia anterior a princípio. Sua manhã começou devagar, mas tão logo ela já estava pronta, esperando pelo irmão.
— Ah, Lilly, temos que ir buscar o Adam... – disse Peter, depois de sair do banheiro, apressado através do hall da escada para a cozinha.
— Por quê? – perguntou Lílian, sentada no primeiro degrau, os joelhos juntos, a mochila sobre o colo. Estava fitando as unhas com reprovação.
Ele riu novamente da cozinha e ela própria não pode segurar um sorrisinho.
— Ele deixou a bicicleta acorrentada no restaurante ontem. – respondeu em voz alta da cozinha, onde preparava um rápido sanduíche de aparência bagunçada. Quando apareceu de novo no vão da escada, já abrindo a porta para sair, metade do pão já tinha sido comido. Não sabia bem porque, mas Peter estava se sentindo muito faminto.
Lílian riu ao lembrar-se da bicicleta azul e precária acorrentada à grade do restaurante árabe.
— Acho que ainda vão cortar a cabeça dele... – comentou, levantando-se às pressa e seguindo o irmão até o carro. Quando os dois entraram e colocaram os cintos, Peter já tinha terminado o pão.
— É exatamente o que eu falo pra ele. – disse o irmão de boca cheia.

No caminho até a casa de Adam, os dois não conversaram muito. Peter estava receoso de entrar em algum assunto relativo à noite passada. Não tinha a menor idéia de como Lílian iria reagir, apesar de ela já não parecer vulnerável como antes. O caminho chuvoso e acinzentado ao redor do carro era silencioso. O ronco esforçado do motor e o som do ar condicionado abafavam as gotas de chuva do lado de fora. Numa das vielas que tomou, Peter teve a forte impressão de ter avistado a motocicleta azul cruzando a esquina ao longe, mas foi apenas uma impressão. Estava vendo coisas e isso o irritou. Descobriu que ainda estava furioso com o homem da locadora, homem da motocicleta, como quer que o chame. Apertou os dedos no volante, ainda sentindo-se tenso quando parava para lembrar o que acontecera; como alguém poderia fazer aquilo com sua irmã?
Mais rápido do que esperava, Adam ouviu a buzina do andar de cima e desceu o quanto antes. Não queria se atrasar para o exame, já que uma nota baixa provavelmente já o esperava. Quando ele entrou no banco de trás com o livro de física na mão, Lílian olhou com reprovação.
— Estudando em cima da hora de novo?
Adam olhou para Peter pelo retrovisor e os dois praticamente trocaram pensamentos pelo olhar. E os dois foram reprimidos pelo sermão da pequena e geniosa Lílian outra vez.

5
Quando o primeiro professor entrou em sala, Peter já tinha ouvido as histórias de Adam da noite passada que envolviam o jornalista alemão e o trote de Ingrid tarde da noite. Em meio às conversas paralelas que seus vizinhos de cadeiras tinham, eles não precisaram maneirar seu tom de voz para não serem ouvidos. Peter gostou muito da idéia de Adam ajudar uma reportagem investigativa que ocorreria sobre o assassinato em sua rua e gostaria ainda mais que o melhor amigo ajudasse a pegar o safado que assediou sua irmã e matou o dono da locadora. Adam, apesar de não ter relação de sangue com nenhuma das vítimas, sentia-se mais ou menos como o amigo: queria o bastardo preso e punido o quanto antes. Como Ingrid foi assunto para os dois, eles trataram de reparar um pouco mais ela durante essa manhã. Ela parecia normal, pelo menos em seu comportamento. Sentava-se no mesmo lugar, calada e como sempre, não olhava para trás em nenhum momento, nem para ver se Adam estava olhando. Ela estava conseguindo levar a brincadeira muito bem até ali. Apenas outro fato passou pela cabeça dos dois, mas eles não o compartilharam por acharem impressão, desnecessário. Ela estava mais atraente, fosse por causa da postura, das roupas, do perfume ou do fato de não estar usando óculos. Algo nela os fez ter um olhar um pouco menos amigável e um pouco mais masculino com relação à amiga de anos. No entanto, ambos guardaram essa impressão para si. Adam ainda a olhou mais algumas vezes, mas Peter logo deixou de lado. Outra garota andava ocupando seus pensamentos durante os últimos dias.
O professor irrompeu pela porta sem desejar bom dia aos alunos, com a pasta de couro debaixo do braço. Sua camisa social branca não era muito adequada a um dia chuvoso. Os locais aonde a chuva tinha atingido ficaram semitransparentes, e seu corpo gorducho só se tornava mais engraçado. O cabelo liso ainda preso no rabo de cavalo, oleoso como sempre, tinha saído intacto da chuva, de alguma forma. Ele parecia estar nervoso hoje, diferente do usual.
Ele demorou-se um pouco para sentar e mais um pouco para organizar sua papelada por cima da mesa do professor. Silenciosa, mas não muito paciente, a turma manteve os olhos na figura na frente da sala, reparando pela primeira vez como um professor carregava papéis em quantidade. Ao fim do que pareceu ser o decorrer de 10 minutos, ele pigarreou.
— Hoje eu recebi um pedido do Diretor referente à apresentação de um novo aluno que foi transferido para cá por seus tutores e o Diretor deixou bem claro que quer que vocês tornem a estadia dele aqui o mais confortável possível.
O murmúrio começou generalizado na sala. Dentre os que Adam conseguiu ouvir, o único que lhe fez sentido foi que os bacanas deveriam ter doado uma boa soma de dinheiro à escola. O Diretor sempre fora exclusivo com as políticas de transferência e aceitação de estudantes depois do começo do ano letivo, mas não deixava de ser uma pessoa financeiramente fácil de agradar. Subornável. Adam conheceu vários alunos que tiveram de esperar até o começo do ano seguinte para iniciarem os estudos, meses atrasados, e considerava sorte desse rapaz ter boas graças para precedê-lo.
— Silêncio, por favor. E não vão entrando em assuntos delicados como esse. Se esses boatos chegassem ao Diretor seria muito desagradável. – recomendou o professor. Ele se levantou com um papel na mão, aparentemente o histórico escolar ou a ficha de cadastro do dito novato. Peter já abria um sorriso imaginando como seria ter um novato no ultimo ano para implicar e pressionar. Ele entrara na escola no primeiro ano de seu segundo grau e por ser o mais recente, sempre lhe faziam piadinhas a respeito das coisas que ele não tinha como conhecer, principalmente normas da escola e costumes do professores. Por conta da criatividade cruel dos “companheiros” de classe, Peter recebera diversas detenções por entrar em lugares onde não deveria e dizer coisas indevidas aos professores errados. Num canto da folha do caderno, rabiscou rapidamente algo com a caneta velha.
Adam já sabia que era um bilhete para ele antes mesmo do amigo terminar de escrever. Pegou-o e leu:
SEMPRE QUIS IMPLICAR COM UM NOVATO!
Adam sorriu e rabiscou uma resposta sem na verdade tê-la como opinião, apenas para agradar o ânimo de Peter:
Eu também! Vamos infernizar!
Peter terminou de ler o bilhete absorto nos planos que já fazia para o novato e com a audição sufocada pelo ruído da própria risada, que abafava com a mão. Sentiu um cascudo fraco e simbólico nas costas e virou-se para olhar por cima do ombro, vendo uma amiga censurá-lo com os olhos. Tocou-se rapidamente e endireitou-se na cadeira, olhando para frente. Toda a sala o fitava. Sobre a bancada, ao lado da mesa do professor, estava um rapaz. O novato. O olhar de repreensão dos colegas passou rapidamente do roqueiro desinteressante para o jovem de aparência amigável e absolutamente interessante na frente da sala. Era um rapaz de cabelos pretos curtos que mal alcançavam nas sobrancelhas. Estas eram bem desenhadas, porém grossas. Combinavam com sua pele morena e seus olhos castanhos. Aparentemente era um rapaz normal, sem parecer alto demais nem baixo demais, bonito demais ou bonito de menos. No entanto, parecia que todos os olhares femininos da sala o admiravam. O professor falou, sem deixar de pigarrear antes.
— Agora que Peter decidiu se juntar a nós, pode se apresentar, Sr Hensen.
O rapaz pareceu constrangido com a surpresa do professor. Achou que seria apresentado e não teria de falar nada. E agora estava ali, diante de 30 pessoas que o encaravam e algumas que de fato o encaravam com avidez.
— É... Bom dia. Me chamo Natanael Hensen, tenho 18 anos. – ele fez uma pausa, revirando as mãos nos bolsos da calça jeans. – Fui transferido de Connecticut pra cá pelos meus tutores. E... Bom é só isso.
Peter revirou os olhos para Adam ao ouvir os sussurros das meninas atrás dele. Adam concordou com a cabeça e olhou com certa reprovação para as meninas. Pelo que se podia ver, o professor também acreditava na hipótese de que os tutores eram ricos, pois a expressão que fez ao ouvir a apresentação do rapaz foi impagável. Ele devia achar que um filho de pessoas ricas e requintadas, de Connecticut, faria uma apresentação formal, com o olhar firme e a voz projetada como quem faz teatro. E ouviu aquela voz simples do rapaz, fazendo uma apresentação informal e constrangida.
Instintivamente, Adam virou-se para frente, procurando Ingrid com o olhar. Novamente, ao tocá-la com os olhos, não conseguiu afastá-los. Esquisito sentir-se atraído por uma amiga que se conhece desde criança. Apesar disso, Adam não desviou o olhar até ver que o novato passou ao seu lado e sentou-se bem perto dele e de Peter. Os dois olharam junto com quase toda a classe e Natanael pareceu um pouco encabulado de ser o centro das atenções por mais tempo que necessário. Poucas pessoas não o olhavam, sendo o professor uma delas. O rechonchudo senhor já se encontrava no quadro branco, rabiscando o tema da aula: Terceira Revolução Alguma Coisa. Ninguém prestava atenção de verdade, pois todos estavam trocando cochichos, bilhetes e até mensagens de celular. Peter estava sentado de forma relaxada na cadeira, agitando o lápis na mão, batendo com a ponta no caderno. Estava com os pensamentos longe, tentando musicar uma letra de música que tinha feito para sua banda. Seus pensamentos estavam nítidos hoje e geralmente ele criava bastante em dias assim.
Uma mão tocou rapidamente a beira de sua mesa, deixando um retalho de papel dobrado. Era rosa com estampas de coraçõezinhos. O roqueiro olhou com uma sobrancelha erguida, vendo sua amiga, Elaine, sinalizar para ele entregar o papel ao novato, sentado atrás e à sua esquerda.
Ele revirou os olhos com um sorriso matreiro e abriu o papel.
— Pet... – sussurrou ela, num engasgo, a voz saindo mais alta do que deveria. O professor olhou por cima do ombro e a reprimiu com um pigarro, seguido de seu nome.
Peter não se deteve nem minimamente ao ler.
“Oi, novato! Precisa de alguém pra te mostrar a escola? Eu posso ajudar se quiser”
Ele riu baixo e amassou o papel, jogando-o em Adam logo em seguida. O amigo olhou por reflexo e pegou o papel amassado do chão.
Peter já tinha se virado na cadeira, olhando para o novato, que parecia assustado e alienado na classe. Ele sussurrou cuidadosamente.
— Minha amiga Elaine quer sair com você, topa? – disse, segurando o riso com muita maestria. Adam, duas cadeiras à frente do novato, prestando atenção no amigo, não segurou a risada ao ver a expressão estupefata de Elaine. O novato sorriu, não constrangido, mas parecendo feliz por alguém falar com ele como se não fosse um objeto novo.
— Sr Savage, gostaria de alegrar meu dia com a piada que acabou de ouvir? – perguntou o professor, com aquele típico tom de voz desdenhoso que todo o corpo discente sabe usar.
Adam forçou o sorriso a sumir, mas Peter não conseguiu. Afundou a cabeça entre os braços e tratou de disfarçar o melhor possível. Ao seu lado, Elaine se roía de raiva.
O antiquário se recompôs e já estava tentando inventar uma desculpa. Não gostava de ser pressionado como agora, e sempre arrumava um modo de ficar por cima ou dar a ultima palavra.
— Desculpe, professor, fui eu que disse umas besteiras. – falou a voz do novato, Natanael.
O gorducho murmurou alguma coisa entre dentes, mal movendo os lábios, que ninguém entendeu e voltou ao quadro branco.
As meninas da sala pareciam estar olhando para um astro, da forma que seus olhos demonstravam admiração pelo rapaz e pelo ato que ele cometeu. Adam se virou sobre o ombro e agradeceu silenciosamente, erguendo o polegar. Peter esticou o braço comprido e deu-lhe um amigável soco na perna. Elaine, ainda nervosa, parecia estar se acalmando conforme dava lugar à admiração pelo novato.
Algumas cadeiras à frente e à esquerda, Ingrid ainda não havia olhado para trás.

6
A ronda dos policiais Geoffrey e Bob geralmente não incluía o quarteirão da Fox High, mas por ordens expressas de Martin, eles deveriam passar por aquela área durante uma semana ou até que o suspeito fosse preso. A ordem fora muito vaga e poderia se estender por um período de tempo que não agradava a nenhum dos dois.
Geoffrey, mais velho, experiente e astuto que Bob, dirigia devagar pela rua, olhando com um pouco de descaso pelas grades do estacionamento. O Camaro verde do filho do chefe de polícia estava lá, sem suspeita. Particularmente, Geoffrey não gostava dessa parte do trabalho, a ronda. Tinha preferência, quando possível, pela prisão, e pelo interrogatório de suspeitos, mas recentemente havia tido poucas oportunidades com suspeitos, já que Martin estava se incluindo em quase todas as investigações que surgiam nos últimos meses. Além disso, ainda tinha que deixar algumas oportunidades para o novato Bob, até que o garoto pegasse o jeito. Um espaço de quase 30 anos separava os dois, Bob com 23 e Geoffrey com mais de 50 e apesar da experiência, a idade já alcançava o cinqüentão.
— Tudo certo, Geoff? – perguntou o jovem, deixando de olhar a margem oposta da rua, ponteada com árvores à cada 5 metros e passando a olhar para o parceiro.
— Tudo dentro do normal. Vou voltar pro distrito.
Bob concordou com a cabeça, mas antes de estar completamente ciente, viu alguma forma azul entre dois carros no estacionamento. Conforme o carro andou, a coisa azul ficou fora de perspectiva e ele a perdeu de vista.
— Espera! – Bob segurou o braço do parceiro com força e ele freou a viatura.
O novato saiu do carro e o contornou em direção a escola, sem sequer ouvir o parceiro perguntar o que ele estava fazendo. Chegou até as grades e começou a caminhar ao lado delas, os olhos no estacionamento. E ele viu.
Três carros depois do Camaro de Peter estava ela. Uma motocicleta azul, nova em folha, com uma aparência agressiva e veloz. Bob imaginou um piloto sobre ela e na imagem, teria de se estar praticamente deitado sobre ela para alcançar o guidão. Os faróis como dois triângulos, felinos como olhos de lince, que dava à motocicleta uma presença imponente. Era impossível não percebê-la pelo estacionamento, dentre tantos carros usados (e mal-usados) de adolescentes sem dinheiro. Além de parecer uma peça cara, Bob não achou que seria prudente ver um jovem sobre algo com tanta velocidade e potência.
Geoffrey o alcançou, segurando seu ombro e o virando para encará-lo.
— Escuta, Bob, não sei se você lembra da época da academia, mas um policial não sai do veículo sem dar satisfação ao parceiro! – A voz cansada do homem não tinha imponência nenhuma, por melhor que fosse seu argumento.
O jovem se desvencilhou sem muita dificuldade e indicou a moto ao parceiro.
— Acha que é a que estamos procurando?
Geoffrey abandonou a expressão que ele acreditava que fosse intimidadora e contemplou a moto. A resposta lhe veio rapidamente à cabeça.
— Filho, vá até o rádio e contate o chefe. Vou falar com o Diretor.
O novato, orgulhoso de si e empolgado pela “ação” que podia ver se aproximando, pegou o rádio do carro imediatamente.

7
A aula do professor gorducho correu bem até sua metade, quando a turma desistiu de se conter e ignorou o conteúdo cansativo e entediante que estava sendo ensinado. Sentindo-se ultrajado, o professor saiu da sala de aula, murmurando reclamações e ameaças de advertências e suspensões.
O centro das atenções foi o calouro Natanael que, apesar de tímido, conseguiu lidar bem com as perguntas que os novos colegas de classe despejavam.Muitas das meninas estavam ao redor dele, espremendo Adam e Peter, que por azar, estavam próximos. Eles se sentiam completamente ignorados pelas amigas de classe, mas as perguntas que Natanael parecia mais a vontade para responder eram as deles.
—Podem me chamar de Nate, gente. – pediu, numa certa altura.
Depois da prolongada conversa, outro tempo de aula se passou, sem ser sentido pelos alunos.
Tão logo o sinal bateu, Adam e Peter se levantaram para partir e foram surpreendidos pelo novato.
— A gente podia ir junto, estamos todos indo pro lado Oeste. – sugeriu.
Os três saíram pelo corredor, misturando-se com as outras turmas do terceiro ano, que reparavam muito em Nate.
— Claro! Posso te dar uma carona! Só temos que esperar minha irmã no estacionamento! – gritava Peter para sua voz ser ouvida.
No corredor do segundo andar, uma moça nova e baixa de corpo magro e esbelto, cabelos negros e olhos azuis aproximou-se para falar com Peter.
— Onde está sua irmã? Ela deveria ter ficado conosco hoje pra falar sobre um trabalho.
A garota falou com a mão na cintura. Suas roupas eram justas no corpo e ficavam sensuais na moça, mas o modo como ela falava não agradava nem a Adam nem a Peter. Era presunçoso.
— Oi Bárbara. – ele frisou o “Oi”, sentindo-se ignorado. - Não sei, estou indo encontrá-la no estacionamento.
Bárbara já não prestava atenção. Estava com os olhos em Nate, atrás dos dois.
— Oi... – disse, uma doçura repentina inundando sua voz. – Você deve ser o garoto novo.
Faltava-lhe escorrer mel pelos lábios. Para os dois amigos, essa mudança visivelmente forçada foi o suficiente para entenderem o motivo do desgosto de Lílian pela morena.
— É. Sou sim. Mas não sei da Lílian, sinto muito. - disse de forma rápida, como se tivesse decorado e cuspido de má vontade as palavras. – Vamos indo, gente.
Adam e Peter trocaram olhares amigos de aprovação pelo tom severo de Nate. Os três contornaram a morena, agora quieta, e seguiram para o estacionamento.

O Camaro de Peter estava alguns dedos rebaixado com o peso de Lílian, sentada com as pernas cruzadas sobre o capô. Os três rapazes chegaram por trás da moça, surpreendendo-a com o barulho. Peter já chegou abrindo a porta e tocando a buzina, fazendo a pequena sobressaltar-se e escorregar para fora do capô.
— Não senta no capô! – reclamou ele, sentando-se ao volante.
— Não precisava me assus... – a voz de Lílian foi sugada para dentro com o suspiro que ela deu, como se de repente lhe tivesse faltado ar. Os olhos cor de mel estavam vidrados, fitando o rosto de Nate.
Adam estava um pouco entre os dois,com as mãos dos bolsos do casaco, mas sem bloquear impedir que se vissem.
— O que ele tá fazendo aqui? – a voz de Lílian era quase um sussurro, pouco mais do que isso. Os rapazes só conseguiram ouvir porque estavam muito atentos.
Nate pareceu surpreso ao ver Lílian, mas logo voltou a sua expressão normal.
—Que foi, vocês se conhecem? – perguntou Adam, olhando para os dois.
Peter saiu do carro, olhando suspeito para Nate.
Uma voz grossa se fez ouvir pelo estacionamento e a maioria dos alunos nos arredores se virou para ver.
— Polícia! Afaste-se do carro e da garota! – era Martin, que vinha se aproximando a passos rápidos pelo estacionamento molhado, com o distintivo na mão. Bob e Geoffrey vinham atrás. Antes que Adam e Peter pudessem ter certeza do que se passava, Geoffrey estava atrás do rapaz, algemando-o, enquanto Martin afastava a própria filha num abraço carinhoso e protetor. Bob, orgulhoso, falava ao jovem.
— Você está preso sob acusação de assédio sexual e assassinato. Você tem o direito de permanecer calado!

quinta-feira, 5 de março de 2009

Invasor - Primeiro Capítulo

1
Era outra daquelas terças-feiras modorrentas. Todas as pessoas na cidade tinham uma expressão simples que dizia: “Acordei hoje de manhã, mas me arrependi”. Os termômetros marcavam 13°C, o que era normal nesta época do ano em Roule County.
Como era de se esperar, ninguém entrara na Paragon, desde que ela abrira às 15:00 até o horário dela fechar, às 21:00.
A porta estava fechada, mas a grande tela de vidro dava uma boa visão do interior da loja, apesar de estar um pouco embaçada; havia pequenas estantes com objetos, atrás de finas vidraças, em demonstração no centro da loja. Para os lados, estantes maiores com livros, vasos, estatuetas. No centro, depois das pequenas estantes, o balcão, com um computador, um telefone e uma grande quantidade de papéis. Nos fundos, haviam estátuas um pouco maiores, bustos, e algumas armas decorativas de bronze e materiais semelhantes. Mas as verdadeiras jóias, como talismãs, anéis, selos e afins, ficavam no andar acima numa gaveta da cômoda do proprietário.
Adam estava sentado na cadeira atrás do balcão, com os pés para o alto, lendo um livro que parecia ter sido mergulhado em graxa. A capa era negra e de aspecto úmido, gorduroso. Tinha a grossura de um pulso e o título em letras douradas e gastas dizia: “Enciclopédia de Evocação do Ilusionista”. Era um dentre as centenas de outros livros que a Paragon tinha, todos velhos e carcomidos pelo tempo. Adam achava que aquele título era, inclusive, bastante comum em perspectiva com os outros. Já passava da hora de fechar, mas ele estava um tanto distraído com o capítulo que detalhava ilusões que evocavam imagens de pessoas, tão reais quanto um reflexo no espelho. Ele mascava um chiclete de canela, enganando o estômago até o jantar. Adam detestava canela, mas era a única coisa que tinha no bolso. Preguiçoso, como diria o outro.

O soar do sino acima da porta da loja desviou sua atenção para a entrada. Adam viu a porta abrir e fechar, mas ninguém entrou.
Curioso, ele puxou o marcador de cima do balcão e colocou sobre a página 119 do livro. Levantou-se da cadeira e correu o olhar preguiçoso pela loja, vendo o que já esperava ver.
Uma gata branca caminhou devagar na direção do balcão e saltou para cima do mesmo, arqueando as costas para receber o carinho de Adam. Ele sorriu e sentou-se de novo, voltando a ler o livro. A gata desceu e fez seu caminho até os fundos da loja, onde um pequeno pires com leite a esperava, todas as noites. Ela sempre aparecia, às vezes com regularidade, às vezes com intervalos de três dias. Mas aquele olhar felino era mais familiar para Adam do que qualquer cliente que ele já tivera. Deixou estar e voltou a ler.
Lá fora, as gorduchas nuvens fizeram a chuva começar a cair, lenta e silenciosamente.
O jovem antiquário não percebeu. Era péssimo para notar qualquer coisa que não se apresentasse bem debaixo de seu nariz, e seu avô sempre o alertava disso. Mas agora ele era um adolescente sem família, com diversos maus hábitos sem ninguém para reprimir. Muitos de seus amigos achavam que deveria ser uma deliciosa sensação de liberdade, e de certa forma Adam se sentia mais independente, livre.
Mas iria arrepender-se de ter deixado seu avô morrer sem ter-lhe dado ouvidos.

2
A próxima hora passou, e os ponteiros do grande cuco ao lado do balcão indicavam 21:31. Ainda chovia. Ainda se encontrava, no vidro da loja, a placa de papelão com as letras de forma que diziam: Aberto. No entanto, Adam não estava mais lendo o excêntrico livro. Adormecera, e ali naquela cadeira, com o pescoço tombado para o lado e o livro aberto no colo, dormiria até que o cuco marcasse, com seus velhos ponteiros, a chegada da meia noite.

3
O badalar do relógio fez Adam despertar num susto profundo. Foi como aquelas vezes em que mesmo antes de abrir os olhos para tomar consciência do mundo, seu cérebro já se dá conta da verdade. Você dormiu enquanto lia. Ele projetou-se para frente, para sair da cadeira, mas esqueceu-se que seus pés estavam sobre o balcão, e tudo o que conseguiu foi cair sobre o carpete marrom. Xingando, levantou-se. Tudo estava escuro, e ele estranhou. Esfregou os olhos, e ouvindo o barulho da chuva do lado de fora, deu-se conta de que todas as luzes estavam apagadas, inclusive as do outro lado da rua. Parecia ser um blecaute. Ainda que tivesse certeza do corte de energia, tentou acender o abajur sobre o balcão, sem resultado. Viu também que a placa da loja indicava que estava aberta. Isso o preocupou levemente, alguém poderia ter entrado e roubado algo.
Foi quando se tocou. Alguém pode ter entrado. E de fato, ainda poderia estar ali dentro. Movendo-se lentamente, como se pudesse ser visto e baleado por alguém, Adam colocou a mão debaixo do balcão e pegou o velho taco de seu avô. Era de madeira e tinha na base uma espécie de dedicatória em garranchos que o próprio velho nunca entendeu. Esse pensamento suspeitoso não é absolutamente comum numa situação dessas, mas Adam sabia que Roule County deixara de ser um lugar tranqüilo antes mesmo dele nascer.
Com a arma erguida sobre o ombro direito, foi para os fundos da loja, onde se fica uma escada de ferro em espiral que leva até o andar de cima, até sua casa. A escada balançou conforme os passos cuidadosos de Adam, mas foi silenciosa, e ele deu graças por isso.
Chegando ao andar de cima, no corredor, olhou ao redor a procura de qualquer coisa que pudesse estar fora do lugar. Nada.
Sentiu algo roçando em sua perna e não precisou olhar para saber que era a gata. Ela tomou a dianteira e entrou na última porta da direita, a cozinha. Os ouvidos atenciosos de Adam ouviram alguns ruídos e ele se precipitou para o fim do corredor, sem olhar nas portas anteriores. Ao lado da porta da cozinha, parou por um momento, sentindo o coração bater forte.
Decidido, ele entrou.
Derrubados no chão, estavam diversos pacotes de biscoito, além de uma garrafa de leite quebrada. Ao redor do leite derramado, havia três gatos de rua muito sujos bebendo em silêncio. Adam suspirou aliviado sorrindo. Olhou para a gata branca que agora estava sentada em sua pia.
Deixou o bastão ao lado da geladeira e a abriu. Afinal não era nada, apenas uns amigos da gata branca. Bem que lhe tinham avisado que dar comida pra animais de rua não era bom, pois eles sempre traziam seu bando. Disperso, Adam pegou um copo de leite pela metade que tinha deixado ali de manhã e bebericou. Não estava tão ruim. Entornou.
O telefone tocou no meio do gole e Adam tomou um susto tamanho que deixou o copo cair e engasgou.
Batendo com o punho cerrado no peito, atravessou o corredor até seu quarto e tirou do gancho o telefone que ficava ao lado do computador. Ninguém na outra linha; completamente mudo. O jovem antiquário disse alô algumas vezes, mas sem resposta ali. A resposta veio de baixo. O telefone de serviço da loja estava tocando. Estranhando, Adam desceu sem muita pressa. Afinal, já passava da meia-noite e ele não era obrigado a atender ninguém de prontidão.
Chegando sobre o balcão, tirou o telefone do antiquário do gancho. Era um telefone muito velho, com aquela rodela para discar. Nenhum sinal de presença do outro lado da linha. Correndo o olhar pelo balcão, sem procurar nada especial, Adam notou o monitor do computador ainda ligado iluminando seu rosto. Com um suspiro, ele o desligou.
O susto que ele tomou, não foi daqueles em que se salta, engasga ou grita. Foi um susto silencioso. Olhos arregalados e pulmões repentinamente cheios de ar. Grito preso. Voz sumida. Este tipo de susto.
Pela tela negra do monitor, Adam viu o reflexo de um homem nas escadas. Não teve tempo de notar como era o homem, nem em que posição estava, mas Adam viu algo ali.
Virou-se rápido por instinto, mas não havia nada. Normalmente ele não tomaria este tipo de atitude, mas a primeira coisa que pensou foi no bastão. Tinha deixado-o lá encima.
Ligar para a polícia.
E foi o que ele fez, tremendo de medo e preocupação.

4
Muitas cabecinhas se esticavam pra fora das janelas da rua para ver o motivo da viatura parada em frente ao antiquário Paragon. “Não há nada pra se roubar nessa loja”, pensavam.
O rapazinho que se tornou dono há pouco tempo estava sentado no meio fio, enquanto ouvia sem interesse o guarda comunicar pelo rádio que não havia anda de errado.
Adam esperara pacientemente pelas autoridades no andar de baixo, perto da porta de saída e pronto para fugir caso o invasor descesse novamente. Mas ele não desceu e Adam começou a se perguntar se de fato alguém subira.
— Sr. Savage. – cumprimentou uma voz seca atrás do jovem.
Adam olhou por cima do ombro já sabendo quem veria. Martin, o chefe de polícia local. Martin Belmont. Não sabia por que o estava tratando com formalidades. Era pai de um de seus melhores amigos.
— Oficial Belmont. – respondeu, levantando-se e esfregando as mãos. Adam fazia muito isso quando estava constrangido ou nervoso.
— Pode dormir tranqüilo esta noite. Não encontramos ninguém. Se der falta de algum dos seus pertences, pode nos chamar. Em todo caso, o policial Geoffrey vai passar a noite aqui. Sinta-se seguro.
— Vou ficar bem, Martin.
O policial torceu o nariz e olhou de esguelha para o parceiro na viatura. Pareceu não gostar de ter sido chamado pelo nome agora que estava em serviço.
— Foi mal. – disse Adam ao perceber, e Martin não pôde evitar um sorriso. Sempre comentava como achava engraçadas e curiosas as gírias que ele e seu filho usavam.
— Tenha uma boa noite Adam. – eles apertaram as mãos e Adam entrou, indo direto para seu quarto.
Os gatos ainda estavam na casa, não mais na cozinha, mas espalhados por aí. Farelos de biscoito, bolas de pêlo, manchas de leite e de patas sujas. A preguiça levou Adam a decidir que não limparia nada hoje. E talvez nem amanhã. Sábado possivelmente. Depois desta importante decisão, ele foi se deitar. Já passava das duas.

E assim terminou a primeira de muitas noites incomuns de Adam.



— Meu pai foi à sua casa?! – perguntou Peter por cima do ombro. Estava sentado na frente de Adam durante a monótona aula de História enquanto ele contava aos sussurros sobre a noite anterior.
— Shhh! Fala baixo! – censurou Adam.
Peter sentou-se com boa postura novamente, fitando sem ler na verdade as palavras borradas no quadro. O alto e magro professor já estava apagando-as e nenhum dos dois rapazes havia copiado nada. O sinal berrou pelos corredores, arrancando suspiros de alívio de alunos por toda a escola.
—Acha que a Ingrid vai nos emprestar as anotações dela de novo? – perguntou Peter, enquanto os dois se levantam.
Os dois olharam de relance para a garota que se levantava no meio do lado esquerdo da sala. Tinha os cabelos castanhos soltos até as omoplatas, caindo pelos ombros sobre a blusa branca. A cor avermelhada de sua pele somada ao desenho de seus olhos e sobrancelhas a faziam muito parecida com uma índia norte-americana, mas ela dizia que seus pais eram europeus.
— Ela não vai nos negar, só vai reclamar. – Adam guardava a caneta e o bloco de fichário intocado na pasta tira-colo. Detestava-a, mas foi um prêmio de um sorteio. E era a única que tinha.
— Eu sei! – respondeu o outro, alongando a frase dramaticamente. – Só que, cara, eu preferia que ela negasse em vez de reclamar! Não agüento mais ouvi-la falando e falando sobre responsabilidade, Add. Já basta minha irmã!
Peter pareceu ter-se esquecido do assunto sobre a invasão até que Adam teve que lembrá-lo. As sobrancelhas grossas estavam duras sobre os olhos castanhos. O cabelo preto que caía até os ombros estava solto, e não preso como de costume. Peter ia de cabelos presos para a escola, e os usava soltos o restante do tempo, principalmente nos lugares que freqüentava. Peter era um roqueiro assumido.
— Não vai querer saber o resto da história? – perguntou Adam, quando os dois saíam para o corredor do terceiro andar. As turmas de terceiro ano caminhavam sobre papos alegres pelo corredor apertado demais para todos eles. O jovem antiquário teve de quase gritar pra se fazer ouvir para o amigo.
— AH! Esqueci, me conta! Que aconteceu?
Adam deu de ombros, com um meio sorriso.
— Na verdade nem tem resto. Não acharam nada, o parceiro dele ficou lá pelo resto da noite, mas acho que eu só tava vendo coisas.
Peter fez uma cara de decepção e ficou em silêncio, pensando em algo que a polícia pudesse ter esquecido. Ele queria que tivesse havido alguém lá à noite, teria sido legal.
— E os telefonemas estranhos? – lembrou-lhe esperançoso. Adam riu das esperanças que seu amigo tinha sobre a invasão de sua loja.
— Ah, o que têm eles? Eram o que eram, só estranhos.
Agora eles já desciam as escadas, que eram mais amplas e davam vazão com mais segurança para as cinco turmas dos veteranos de West Fox High.
— Que isso, deixa de ser despreocupado, podem ligar de novo hoje à noite!
Adam gargalhou agora.
— Você quer mesmo que eu esteja ferrado, né? Aliás, o que teria pra roubar na loja? – Ele evitava falar o nome de sua loja. Não queria parecer presunçoso com se estivesse fazendo propagandas de seu negócio quase decadente.
— Mas, cara, seria muito irado e você sabe disso! Talvez até os caras do basquete gostassem dessa história. – disse o roqueiro, os olhos pretos faiscando.
— E porque você acha que eles não gostariam de nenhuma outra? Sabe, eles não são brutamontes valentões. – Apesar de medirem 30 centímetros a mais que nós, pensou.
— Ah, pra você... Gente como eles não costumam gostar de gente como eu.
— Você anda vendo muitos filmes colegiais, Pete. Quando foi a última vez que você viu um nerd enfiado na lata de lixo aqui?
Peter ficou quieto, parecendo se lamentar por compartilhar seu “mundo particular” com Adam. Aparentemente ele achava que vivia numa escola de grupos como nos filmes, mas não era verdade. Pelo menos não que Adam soubesse.
É claro que West Fox tinha a equipe de basquete, de futebol, as patricinhas, os músicos e todo o resto. Apenas não havia atrito entre as porções. Em seus três anos ali, Adam jamais brigara, vira uma briga, ou ouvira alguém dizendo que tinha motivos para começar uma.
Debaixo dos portões da escola, que era ligado a dita cuja por uma estrada de pedra ladeada pelas vagas do estacionamento, Peter segurou Adam pelo braço mais uma vez, como fazia várias vezes por mês.
— Carona hoje? – ofereceu, visivelmente sem esperanças.
— Não, cara, valeu. Vim de bicicleta. – sorriu Adam orgulhoso, apontando para o outro lado da rua, onde sua bicicleta estava acorrentada à grade do estacionamento de um restaurante árabe. Os donos certamente não gostavam, mas o antiquário era cuidadoso o suficiente para acorrentá-la atrás de arbustos onde não ficava visível.
— Os árabes ainda cortam sua cabeça se descobrem... – riu Peter.
Adam sorriu, parecendo extremamente satisfeito consigo mesmo por desafiar os donos do restaurante com uma bicicleta.
— Eles não são terroristas, sabia, Pete?
— Isso não significa que são bonzinhos, Add. – Disse Peter, girando a chave de seu carro no indicador.
— Ah, eu aceito carona, Pete! – a cheia de energia de uma moça veio detrás dos rapazes.
Eles se viraram já sabendo quem era. Adam sorria para vê-la, mas Peter parecia apavorado.
— Ei, Lilly. – cumprimentou Adam, as mãos nos bolsos da jaqueta. Estava frio, nublado e parecia que ia chover. Dia típico do outono de Roule County.
A moça de cabelos loiros e curtos ficou na ponta dos pés e deu um beijo estalado no rosto de Adam. Estava usando um casaco cheio e pesado, de cor bege, que combinava com seus olhos cor de mel. Usava luvas de couro e vestia, como todos na escola, calças jeans. Nem as patricinhas se arriscariam a uma saia nesse tempo. Não pelo frio, mas pelo vento. Elas não iriam querer lufadas de ar levantando suas saias e mostrando suas lingeries de grife. Aparentemente o restante masculino da escola discordava firmemente desta decisão. Isto posto, fica claro que os dias quentes e ventosos eram os mais divertidos em West Fox High.
— Oi, Lílian. – disse Peter, já esperando uma reação desaprovadora de moça baixinha. Era pelo menos um palmo mais baixa que eles.
— Vai me levar pra casa, né? – perguntou, fusilando-o com os olhos.
— Claro, maninha! – aceitou sem pestanejar, encrencado, enquanto ia junto da moça até o carro.
Lílian era a irmã mais nova de Peter. Peter e Lílian Belmont tinham uma relação fraternal bem peculiar. Apesar dele ter 18 e ela 15, parecia ser ela a mais velha, mais responsável, mais inteligente e mais madura. A única coisa em que Peter realmente se mostrava mais velho era quando dirigia. Mas assim que a pequena Lilly tivesse idade suficiente, isso mudaria. Apesar de atritos e conflitos, os dois se davam bem, sem se dar conta disso. Eram muito parecidos.
Adam riu. Conhecia os dois desde os 7 anos de idade e pôde ler algo furioso e ressentido nos olhos de Lílian. Parecia estar nervosíssima com o irmão. Eu gostaria de ver essa.
― Ei, Pete, acho que quero uma carona, sim. – os dois se viraram. Lilly não mostrou reação, mas Peter o olhou com reprovação e pavor.
Ele se aproximou do ouvido de Adam e sussurrou.
— Por que quer ir, cara, sabe que ela vai falar pelos cotovelos... – disse, tentando não tornar as coisas mais constrangedoras. Já era difícil receber sermão da irmã e a presença do melhor amigo não acalentaria as coisas.
— Pra ver o circo pegar fogo. – disse o jovem a seu amigo, sorrindo e piscando.

6
Sempre gostei do carro do Peter, apesar de ser velho, lento e ter um for cheiro de sapateiro no interior. É um Chevrolet e não sei se estou certo, mas diria que é um Camaro. Era verde escuro, ou fora preto quando fabricado.
De qualquer forma, já me preparava para uma viagem muito divertida até a loja. Adorava ver Lilly nervosa.
Adam insistiu para sentar ao lado de Peter na frente. Lílian não entendeu o motivo, mas ele sabia que se estivesse ao lado do irmão, brigando com ele quanto dirigia, corriam um sério risco de se machucarem. Peter não era um ás do volante e Lílian não era uma moça muito controlada. Inevitavelmente, ela foi atrás.
Sabendo das suscetíveis agressões físicas, Adam ficou em silêncio até que chegassem à esquina da rua. E Lílian também esperou, um pouco, mas logo começou. Adam não pode evitar um sorriso.
— Então, Peter, saiu tão apressado essa manhã...
Ele ficou em silêncio. Estava com o olhar fixo na estrada, mas parecia realmente nervoso sobre o rumo que a discussão ia tomar. Ele nunca estivera assim.
— Adam, querido, você não imagina minha surpresa – o sarcasmo inundava seu tom de voz, e apesar dela ter dito o nome de Adam, seus belos olhos fitavam a nuca do irmão pro trás do banco. – quando acordei hoje de manhã e, depois de me arrumar e tomar meu café, descobri que meu irmão, minha carona, já tinha saído de casa há mais de 20 minutos. E melhor ainda, não imagina como eu fiquei quando descobri que estava chovendo canivetes lá fora! – a este ponto, ela já falava mais alto.
— Que barra. – disse ele, e Peter pareceu querer enfiar o carro num poste só pra matar Adam.
— Lilly, maninha... – tentou ele, em vão. Foi atropelado pela voz da pequena irmã.
— Mas sabe, Adam, eu achei que estaria tudo bem, afinal eu só teria que esperar meu pai sair pra trabalhar e pegaria uma carona com ele!
Peter olhou o retrovisor pra ver quão ruim estava a situação. A expressão que viu no rosto de Lilly o fez se arrepender de olhar.
— Se meu irmão não tivesse sumido eu não teria que esperar... Não é mesmo, Peter Terrance Belmont?! – ela deu um soco no banco do irmão por trás.
— Lilly, eu tive que sair mais cedo pra... – novamente, foi atropelado.
— Ah, mas minha manhã não acabou aí! Eu fiquei mais surpresa ainda quando papai levantou 40 minutos atrasado dizendo “puxa filha, que noite longa!” – ela o imitou falando com a voz grossa e rouca. – Adivinha porquê? Por causa de uma queixa da Paragon, no meio da madrugada!
Então Adam sentiu um soco em seu banco, na altura da cabeça. Aparentemente, agora ele também estava envolvido no sermão.
Merda, merda, merda, to encrencado... Pra quê eu fui querer vir junto?!
— E quando ele finalmente saiu de casa pra trabalhar, eu já estava mais de uma hora atrasada pra aula... E pra combinar com essa delícia de começo de dia, quando cheguei, descobri que o professor tinha passado um trabalho super-trabalhoso pra semestre que vem. E adivinha? Como eu não estava presente, fui sorteada pra um grupo. Agora adivinhem qual grupo?
Peter engoliu em seco, e Adam também. Sabíamos que a pequena Lílian, apesar de sorridente e simpática, detestava certa garota em sua sala. Bárbara Shelton. A Bárbara Shelton. A jovem de cabelos pretos e olhos azuis que conseguia praticamente tudo com seu papai Deputado. Nem Adam nem Peter culpavam Lílian. A moça era realmente detestável.
— Digam, em qual grupo eu fiquei? – perguntou ela, e os rapazes perceberam que não era uma pergunta retórica.
— Ahm, daquela moça, a Julie? Vocês parecem se dar be... – outro murro atrás do banco de Peter e ele se calou, freando o carro com o susto, mas logo retomando a rua.
Adam também teve seu murro.
— Adam, diga pro seu amigo pra não ousar fazer brincadeirinhas! – disse Lílian. Adam teria ficado ressentido, mas conhecia-a muito bem para que se ofendesse com aquele tom de voz. Lílian sempre fora adorável. Era uma pena que ela tivesse tido uma manhã ruim.
— Pete, cara, só dirija... – disse numa voz baixa cautelosa para que não desse motivos para que Lilly se irritasse mais.
— E é bom aprender a dirigir apanhando porque com certeza você vai me trazer pra escola até o fim dos tempos, Peter Belmont! Nunca mais ouse sair cedo sem me avisar! Fiquei no grupo daquela Bárbara – ela acrescentou uma grande pitada de nojo à voz. – por culpa de vocês!
—Ah, Lílian não é culpa minha se... – Adam tentou argumentar. Péssima idéia.
— Porque foi chamar logo meu pai, seu paranóico? Porquê você fica vendo coisas eu vou ter que suportar aquela garota até semestre que vem! E você, seu relaxado, deixou sua irmã em casa sozinha num dia de chuva! É bom ter ótimos motivos!
E ela continuou com a reclamação. Nenhum dos dois ousou interromper, reclamar, sequer suspirar. Com sorte, ela se acalmaria antes de chegarem. Mas não antes de esmurrar seus bancos pelo menos mais 10 vezes.

7
Peter estacionou o carro à esquerda da porta de sua casa. Era branca, feita numa madeira resistente, com dois andares e um sótão. Tinha uma varanda na frente, com um banco velho que ninguém arriscava se sentar. Simples e bonita. Bem melhor do que o meu buraco encima da loja. Àquela altura Peter já tinha ligado para casa e perguntado se Adam podia ficar para jantar. Ele precisava do amigo pra sobreviver ao resto da raiva de Lílian. Adam estava errado ao pensar que ela estaria calma quando chegassem. Ela devia realmente abominar a existência de Bárbara.
Quando entraram pela soleira da porta, Lílian subiu as escadas para seu quarto sem dizer nada.
— Mãe, chegamos! – gritou, entrando. Adams seguiu-o. Os dois tiraram os sapatos na porta e descalços foram até o quarto de Peter, também no segundo andar.
Depois que os irmãos trocaram as roupas, ambos desceram para o jantar. A mãe deles, Martha, tinha acabado de sair para levar comida para o marido na delegacia.

Os três estavam á mesa, em silêncio. As cortinas e janelas estavam fechadas, e a única iluminação vinha do lustre de teto que pendia cerca de meio metro acima do centro da mesa. Eles comiam o macarrão em silêncio. Adam e Peter trocavam olhares entre si assim como olhavam para Lílian. Ela comia em silêncio, sem levantar os olhos. Desta vez, ela estava magoada de verdade, o que era incomum. Lilly era uma menina de emoções à flor da pele, então de tempos em tempos era esperado que ele se aborrecesse com algo e explodisse.
Ela pigarreou e levantou-se, levando o prato e o copo consigo para a cozinha.
— Parece que dessa vez a gente foi meio longe... – disse Peter, arrastando a ponta do garfo no prato quase vazio.
— A gente nada, eu tive motivos pra... – Adam começou seu argumento, mas deteve-se quando ela voltou e sentou-se à mesa de novo. Apoiou o rosto nas mãos e bufou, agitando as pernas por baixo da mesa.
Adam teve uma idéia.
— Ei, Lílian, porque você e Peter não vão dormir lá em casa na sexta à noite? Posso alugar alguns filmes pra gente ver. Podemos conversar e dormir tarde, vai ser divertido.
Ela ficou um pouco em silêncio, parecendo contornar os desenhos da toalha de mesa com os dedos. Digeria a idéia aos poucos e chegou à conclusão de que uma hora teria de falar com eles. E ver filmes com os dois rapazes podia realmente ser divertido, visto que ela não tinha nada melhor para o dia.
— Posso escolher os filmes? – perguntou, e tanto Adam quanto Peter se agarraram a esse lampejo de empolgação. Ela sorriu de leve e eles perceberam.
— Claro, mana, as damas mandam. – brincou Peter retirando-se brevemente da mesa nossos pratos.
Enquanto ele estava na cozinha, Lílian esticou o braço pela mesa e segurou a mão de Adam. Eles se olharam sorrindo fracamente.
— Desculpa eu ter gritado com você e ter te chamado de paranóico hoje... – disse ela com sinceridade.
— Relaxa, Lilly. Tô acostumado com seus surtos de raiva. – Adam desculpou-a.
— Só que ele não esperava que você fosse descontar nele hoje, também. – Peter voltava da cozinha com uma grande taça de sorvete e três colheres.
— Oba! – disse Adam, debruçando-se sobre a mesa pegar sua colher e lambê-la.
— Mano, desculpa ter gritado com você também. Apesar de você estar errado de qualquer forma... – disse ela, e em seguida riu. Lílian não era o tipo de pessoa que passava muito tempo sem uma risada, por isso Adam gostava de estar com ela. Com o riso gostoso e contagiante da moça, os dois também riram.
— Já contou pra Lílian o que aconteceu com você ontem? – perguntou Peter, sentando-se. Ele só tocou no assunto novamente porque ainda tinha esperanças de que o amigo admitisse que não estava vendo coisas.
A moça ficou em silêncio esperando que Adam começasse a falar, mas ele não começou até depois de mais duas colheradas no sorvete. Respirou fundo e contou novamente o que aconteceu.
...

— Adam, e se ele voltar lá? – perguntou ela. Exatamente como seu irmão, esperançosa pela insegurança do amigo. Bem parecidos, pensou ele de novo.
— Já disse que não era ninguém, só tive a impressão de ver alguém, nada mais. – repetiu ele, mas sabia que ia ser difícil ficar na defensiva com os dois se unindo contra ele.
— Se você acha que só estava vendo coisas, então porque ligou pra polícia? – atacou Peter, a irmã concordando energeticamente pelo outro lado da mesa.
— Porque eu estava morrendo de medo, ora! Se vocês acordassem de madrugada com as portas de casa abertas e ouvissem barulhos também iam ficar com medo! – retrucou.
— Ah, então você admite que ele fez barulho! – Lílian se empolgava cada vez mais.
— Foram os gatos, Lílian... – ele debruçou sobre a mesa. – Olha, gente, parem de tentar me colocar em perigo porque eu tenho certeza que se tivesse mesmo um invasor vocês iam se arrepender de falarem desse jeito.
— Ah, pára de ser dramático, seu mariquinha! Tá com medo, né? – provocou Pete dando-lhe um soco no braço
Adam bufou. Estava ficando pressionado demais. Revidou o soco e se levantou.
— Tá bom então, porque vocês dois não dormem lá esses dias? Quem sabe o invasor - Adam fez aspas com os dedos e deu uma ênfase sombria à própria voz. – pega vocês primeiro pra aprenderem a lição.
— Ótimo! – Lílian levantou-se.
— Boa, gostei! – disse Pete ao mesmo tempo.
Adam e Peter estranharam quando ela saiu da sala para o corredor e começou a subir as escadas.
— Lilly, o que você ta fazendo?
— Pegando umas roupas, ué! – berrou ela em resposta.
— Ela ta falando sério? – perguntou Peter sem precisar de resposta. Ficou um tempo parado na espera de que ela disse algo mais, em vão.
— Vai pegar umas roupas também. – disse Adam.
— Ah, tá... – disse ele com desdem. – Não preciso levar roupa, pego emprestado de você. – respondeu, limpando a taça de sorvete com o dedo.
Adam sentou-se no peitoril da janela e cruzou os braços. Chovia lá fora e o barulho das gotas no vidro era constante. Ele gostava.
— Cueca, não. – foi sua palavra final.

8
Os três foram para a Paragon no Camaro de Peter. Ele tomava cuidado ao dirigir na chuva agora que era noite. No banco de trás, Lílian ouvia música no iPod ao lado das mochilas com o material escolar e uma terceira bolsa com suas roupas. E é claro, as cuecas de Peter.
— Quanto você calça, Pete? – perguntou o antiquário, olhando o tênis All-Star cinza que o amigo usava pra pisar nos pedais do carro. Adam achou que o estofado da velha poltrona da Paragon parecia mais conservado que o calçado.
— Não sei... Acho que 40.
— Você calça 42, Pete. – disse Lílian atrás. Ela tinha tirado um dos fones.
— Sério?! – perguntou ele surpreso. Adam e Lílian riram. – E pode ir esquecendo, Adam, não quero que você gaste seu salário pra me dar um tênis. Só aparecer pra comer bolo já é o suficiente. A gente sabe quanto você tira com aquela loja. – Tirava pouco.
— Tá, talvez não um tênis, mas vou dar alguma coisa. Não vou deixar mais esse aniversário passar despercebido.
— Ai, Adam, que coisa, ainda falta um mês. – disse Lílian, quando Peter virou para entrar na rua de Adam.
Lílian tomou um susto quando uma motocicleta azul passou ao lado deles na contramão, como um borrão. Nem o barulho da forte chuva abafou o som grave e penetrante do motor, que fez o motor do Camaro de Peter parecer uma bruxa com asma.
— Nossa! – exclamou Adam. – Que cara maluco, quase vem pra cima da gente!
— Nunca tinha visto uma moto assim aqui na cidade... – comentou Peter estacionando em frente à Paragon.
Eles desceram às pressas do carro e se molharam bastante até entrar na loja.
— Deve ser um bacana da cidade grande. – comentou Lílian, entrando primeiro.
Os dois irmãos entraram na frente comentando o básico sobre a decoração de século XVII da loja. Peter comentou sobre um vaso decorativo que ficava ao lado da estante de livros. Lílian lia as lombadas na nova coleção de enciclopédias que chegaram e ela tinha o mesmo sorriso cético, torto e atraente no rosto.
—Que língua é essa, Adam? – perguntou Peter, passando os dedos pelas inscrições na lateral do vaso.
— Mandarim, acho. – respondeu, lembrando-se de algo que seu avô o havia dito há mais de 3 anos. – “Coisas escritas em línguas que você não entende sempre valem mais!”.
Os dois olharam para o antiquário, e perceberam que ele estava num momento nostálgico.

Dez minutos depois, os três estavam na sala, no andar de cima, tentando encontrar algo agradável pra se ver na televisão. Sempre fora algo complicado, pois Peter gostava de ação e documentários, Lílian gostava de comédias e programas de auditório, e Adam simplesmente não gostava de assistir televisão.
— Eu ganhei esse DVD do Piratas do Caribe no começo do ano, pode ser? – perguntou o anfitrião, ajoelhado ao lado do móvel, procurando qualquer coisa que servisse.
— O primeiro filme? Que velharia, cara, aqueles zumbis esquisitos... – resmungou Peter, e pareceu se iluminar com a própria frase. – Tem algum filme de mortos-vivos aí?
Lílian surpreendeu aos dois quando falou, a voz mais empolgada do que eles esperavam.
— Adam, não chegaram filmes novos na locadora aqui da rua? – perguntou, olhando esperançosa pros dois.
— O que você quer pegar? – perguntou Adam. Teria se oferecido pra ir, mas Lilly preferia ir por si mesma, orgulhosa como o pai.
Mas ela já estava remexendo os bolsos do próprio casaco, procurando dinheiro.
— Já volto, meninos. – despediu-se, descendo as escadas.

Peter e Adam não sabiam se ela demoraria, então aproveitaram o tempo curto que tinham para conversar sem que ela interferisse. Silenciosamente, um já sabia o que o outro queria conversar, pois desde a crise familiar no carro de Peter, uma coisa ficara pendente entre eles.
— Porque você saiu cedo de casa hoje de manhã? – perguntou Adam, lembrando bem que ele não dera uma justificativa para a irmã no carro.
Peter respirou fundo e sentou-se no chão, encostando no móvel onde ficava a TV. Ele estava olhando para o próprio colo, sorrindo quase orgulhoso, mexendo no botão do jeans.
— Responde Peter! – insistiu Adam, mas pela reação do amigo já estava óbvio que não era nada que ele devesse se preocupar.
O amigo roqueiro ergueu o rosto.
— Sabe uma garota do primeiro ano? Cabelo castanho claro até o ombro, mochila branca e rosa? – disse ele, ainda sorrindo de lado.
O antiquário pareceu pensar por um momento.
— Que anda com outras duas, feinhas, que moram do outro lado do mercadinho? – perguntou.
— É...! O nome dela é Amanda. Não sei porquê, mas semana passada nós começamos a nos falar por acaso na hora do almoço... E continuamos nos falando, e falando... E eu acabei me oferecendo pra ir buscá-la em casa e levá-la pra escola um dia desses.
Adam riu alto, uma gargalhada que gostava de usar para desdenhar os amigos.
— Quer dizer então que Peter Belmont conseguiu um encontro depois de, o quê, 7 meses? – brincou. O último relacionamento de Peter não tinha terminado em bons lençóis, meses atrás, e ele dissera com convicção que iria se privar de mulheres por um ano. Parece que ele se adiantara 5 meses.
Ele balançou a cabeça rindo, sabendo que Adam faria graça da promessa que ele quebrara, mas Peter estava feliz demais pra deixar que as memórias do antigo namoro e a implicância do amigo o desanimassem.
— Adam, ela é... Diferente... Além de bonita, simpática... Ela é uma pessoa fácil de conversar. É como se fosse conversar com você, só que muito melhor. – disse Peter, começando a rir. Adam o acompanhou.

Lá fora, Lílian caminhava debaixo das marquises das lojas, braços cruzados na frente do peito. A temperatura decaíra da noite passada para a manhã do dia, e mais ainda à noite. Ela se arrependeu de não ter pego a touca em sua gaveta. Tinha dito pra si mesmo que aquela coisa brega só deveria ser usada quando absolutamente obrigada pela mãe, mas agora que suas orelhas iam ficando mais avermelhadas, ela começara a considerar as paranóias de sua mãe aceitáveis. Mas ela mesma não se culpava por sua negação ao agasalho; a touca tinha sido tricotada por sua avó quando ela tinha idade pra sequer brincar de boneca. Tinha pompons e... Lílian sacudiu a cabeça pra manter o corpo agitado e de certa forma rejeitar o frio por mais tempo. Caminhava olhando para os pés, acompanhando um ritmo rápido até a esquina.
E então, enchendo seus ouvidos como se viesse de todas as direções, o trovão que era o ronco da motocicleta se fez ouvir por toda a rua.

9
A motorista da moto azul desligou o motor do outro lado da rua, na altura da locadora e depois de tirar o capacete prateado, atravessou a rua. Lílian o observava curiosa. Talvez pudesse ver alguma coisa sobre ele que pudesse indicar de onde era.
A curiosidade da moça apenas foi aguçada quando o homem a encarou brevemente antes de empurrar a porta de vidro da locadora e adentrá-la. Ela o viu por tempo suficiente para saber que ele não era da cidade. Pela grossa chuva que caía, não pôde discernir seus traços, mas sem dúvida não era muito mais velho que ela. E, segundo a noção etária que ela tinha, ele deveria estar cursando a mesma escola, se morasse ali.
Enquanto devaneava sobre isso, mal percebera o seu quase deslizar até a porta da loja. O frio já estava esquecido, agora que seu corpo estava formigando.
A jovem sentiu onda intensas de conforto pelo corpo quando entrou na locadora, parecendo atravessar uma parece quase tangível de ar quente. O cheiro característico de plástico e papel e carpete molhado invadiram suas narinas, fazendo-a relaxar. E, ela sentiu fracamente, uma fragrância elegante no ar, cuja origem não associou logo.
No centro da loja, atrás do balcão quadrado de madeira velha, onde estavam colados vários cartazes e papéis com promoções impressas em fontes de muito mau-gosto, estava o senhor atendente, com seus aparentes 50 anos. Faixas de cor branca se espalhavam por sua barda em todo o rosto, mas seu cabelo liso e oleoso era completamente preto. Porque ele não tinge a barba também?, perguntou-se Lílian.
Para uma locadora de esquina com renome algum, o repertório até que era surpreendente. Estantes por todas as paredes da loja tinham prateleiras com filmes separados por gênero, e iam até o teto. Entre duas estantes, havia uma porta estreita de madeira fechada, que provavelmente levava para os fundos da loja. Na estante justamente ao lado, Lilian bateu os olhos na seção de filmes de horror, e sem pestanejar, se aproximou. O rapaz da moto estava próximo, na seção de suspense, com sua jaqueta preta e o capacete prateado. Passava as mãos pelo cabelo curto e arrepiado, respingando água ao seu redor. Usava calças jeans esverdeadas cujas pontas estavam encharcadas. Seus tênis pareciam ser muito mais novos do que uma pessoa normal usaria numa noite tempestuosa como essa. Chegando ao lado dele, Lílian tentou controlar sua curiosidade para não olhar para o lado e ver seu rosto, o que ela conseguiu fazer muito bem até que ele espirrou. Por reflexo, ela olhou.
Ele tinha a pele morena clara e as sobrancelhas bem desenhadas, apesar de grossas. O nariz, de perfil, era bem torneado e tinha uma proporção exata com relação ao resto do rosto que era delicado. Os olhos eram castanhos, quase negros como o cabelo, e os lábios nem carnudos nem finos. Era um rapaz bonito o suficiente pra ser modelo, se assim ele desejasse, mas discreto o suficiente para passar despercebido numa multidão. Lílian o achou lindo.
— S-saúde. – disse ela, sorrindo sem se controlar. Pelo que ela constatava agora, era a primeira vez que gaguejava ao falar com alguém.
Ele se virou, tirando as mãos do rosto ao dar uma leve e baixa risada.
— Obrigado... Não esperava pegar chuva aqui. – disse. Sua voz era quase feminina demais, porém forte. Lílian não teria gostado, mas achou que ela o servia perfeitamente.
Lílian não soube bem o que dizer em resposta ao rapaz, então voltou a procurar por um bom filme de terror antes que o encarasse por tempo demais. Teve a impressão de que ele ainda a fitou por uns instantes antes de voltar a procurar seus próprios interesses na coluna de suspense. A possibilidade dele tê-la olhado por um instante a mais que fosse a deixou corada, e ela achou muito conveniente que ele já tivesse voltado aos filmes. Talvez ela devesse fazer o mesmo.
A maioria das capas que viu não chamou sua atenção de forma alguma. As poucas as quais ela se dava ao trabalho de olhar mais demoradamente tinham títulos repulsivos como: Fast-Food da Morte. Ela teve de se segurar para não dar uma risadinha. Não sabia se ainda estava corada e não queria atrair a atenção do motoqueiro. Quanto aos títulos interessantes, como Meia Noite, quando lia a sinopse, se arrependia e os devolvia a prateleira. Quanto mais procurava, mais achava péssima a idéia de ter vindo até ali sozinha no frio.
— Acho que geralmente as moças procuram suspenses e os caras procuram terror, né? – o rapaz puxou assunto de novo, sem olhar para Lílian. Tinha um filme em cada mão e parecia indeciso.
— É... Estou tentando escolher um pra ver com meu irmão. – disse, antes que ele pudesse pensar que ela era uma louca masoquista.
Ele devolveu um dos filmes à prateleira e leu novamente a sinopse traseira do que restou em sua mão. Parecia estar se decidindo. Ele tinha expressões claras como água, fáceis de ler, como se seu rosto pudesse transparecer praticamente qualquer pensamento superficial, certeza ou duvida, que pairava por sua cabeça.
— Me ajuda a decidir? Posso te ajudar também, se você quiser é claro.
Ah, eu quero! Pensou, quase em voz alto. Segurou a frase pouco depois de abrir a boca pra falá-la. Fechou-a novamente e pigarreou, enquanto o rapaz esperava educadamente por uma resposta.
— Sem problemas. – disse, tentando não parecer empolgada. Ela se saiu bem visto que a expressão dele não se alterou.
Ele finalmente dirigiu os olhos para ela. A diferença de altura entre os dois não era gritante, e Lílian não entendeu bem porque se sentiu nauseada ao encará-lo de frente. Seus olhos negros estavam fixos nos seus. Mas eram diferentes, quase indecisos. Como se a estivesse encarando e ainda assim, não estivesse olhando-a diretamente. Lílian chegou a considerar retribuir a intensidade incógnita do olhar dele, mas achou melhor não. Ela poderia fazer caretas enquanto tentasse.
— Esse aqui é sobre um assalto a banco, tem umas traições, intrigas, tiroteio... Mas já vi vários do gênero... Já viu esse? – ele mostrou-lhe a capa.
Lílian já tinha visto, claro. Adorava o ator protagonista, e o resto do elenco era muito bom. A história era excelente. Talvez fosse a melhor sugestão que ela pudesse dar.
— Ah, já! É muito bom, sim; e diferente. Com certeza você não viu nada parecido. – disse, segurando o DVD pelo outro lado, olhando a capa também.
Ele pareceu pensar por muito mais tempo do que realmente se passou, por fim respondendo:
— O.K., então é esse. – concordou, sorrindo. – Agora vamos arrumar um bem sangrento pro seu irmão.
Tocando as palmas das mãos suavemente em seus ombros, ele deu a volta por trás dela para que pudessem ficar lado a lado de frente para a estante do terror.
Ele baixou o zíper do casaco com o som característico e colocou as mãos nos bolsos. Lílian duvidou que ele fosse indicar um filme logo de cara, e estava certa. Ele parecia tão desestimulado com o segmento de terror quanto ela.
— Seu irmão tem senso de humor? – perguntou casualmente, depois de pouco tempo.
— Ahn... Tem. – disse. Essa pergunta nunca tinha vindo à tona. Ela se divertia com o irmão ocasionalmente, mas nunca o definira como bem ou mal humorado. – Não sei direito, mas diria que sim.
— Então leva esse... – disse, se abaixando e pegando um da segunda prateleira mais baixa. – É um dos mais ridículos que já vi. Dá pra dar umas boas risadas, já que susto mesmo vai ser difícil aqui...
Ele foi esperto o suficiente para baixar o tom de voz nessa ultima frase. O atendente não parecia estar prestando atenção, mas não havia mais ninguém por perto e um par de adolescentes na seção de terror não seria uma má coisa para se ouvir.
Lilian concordou com um sorriso espontâneo que ela logo tratou de querer diminuir. Sorrisos exagerados não eram corriqueiros para ela. Na verdade, estava se sentindo muito desajeitada e exagerada ao lado do motoqueiro, talvez por saber que ele é de fora da cidade, mas provavelmente pela presença que transbordava. Era simpático, atraente e discreto. Além disso, a moto parecia cara, no entanto esse adicional não passou pela a mente da pequena.
Os dois se dirigiram ao balcão com os filmes sugeridos pelo outro em mãos.
Depois da demonstração de atenção, senso de humor e esperteza dele, Lílian, em seu subconsciente assumiu que ele fosse um cavalheiro e que fosse deixá-la passar primeiro. Seu subconsciente foi silenciado quando ele apressou-se para o caixa, passando ao lado dela com rapidez. Deixou o filme no balcão e tirou a carteira de couro marrom do bolso de trás do jeans. Lílian não reparou, mas o jeans estava rasgado na canela, onde havia um fino corte e a mancha tênue de sangue. Ele deixou uma nota de 50 sobre o balcão e acenou com a cabeça para Lílian.
— O dela também, por gentileza.
Lílian ficou confusa. Ele estava se oferecendo para pagar? Por quê?
O balconista, grosseiro e silencioso, tomou o filme das mãos da moça e passou na máquina, o clássico beep ecoando pela loja.
Com o pagamento efetuado, Lílian começou a argumentar, tarde demais.
— Não precisava ter feito isso, moço, sério, eu trouxe... – o telefone da loja então tocou, soando quase brutal naquele silêncio em que só a voz dela se fazia ouvir.
O atendente demorou mais 3 toques para tirá-lo do gancho, levantando preguiçosamente de sua cadeira giratória e caminhando monotonamente até a outra ponta do balcão.
— Locadora Rock Video, boa noite...? – disse, numa voz arrastada. Se Peter estivesse ali, diria que ele tem a voz certa para dublar vilões de desenhos animados. – Alô?
Ele falou ao telefone sozinho por 10 segundos, parecendo não receber resposta. Lílian, distraída demais para detalhes assim, não percebeu novamente, mas o motoqueiro, que conferia o troco, ficou imóvel. Tentava ouvir o que pudesse da ligação, apesar de só o homem de cabelos oleosos falasse algo. Se Lílian estivesse de frente para ele, e pudesse ver seu rosto facilmente legível, diria que ele estava preocupado, assustado e surpreso. Ou talvez apenas com raiva.
— Vamos sair logo daqui... – com abuso, ele fechou os dedos ásperos ao redor do pulso de Lílian e a puxou para fora da loja, apressado.
— Hey, o que foi? Porque essa pressa? Me solta! – reclamou a jovem. Ter as maravilhosas características que tinha não o dava o direito de fazer isso com ela.
Do lado de fora da loja, o frio retomou Lílian, mas seu corpo estava quente com a excitação do momento.
— Você mora aqui perto? Consegue chegar rápido em casa? – perguntou, e então Lílian viu seu rosto. Assustada como estava agora, ela interpretou como se fosse apenas uma má intenção. Porque um desconhecido perguntava onde ela morava?
Agora tudo fazia sentido. A gentileza do pagamento, a simpatia um tanto exagerada, o contato físico. Ele não poderia ter boas intenções.
—Me deixa em paz! – Lílian fez como nos filmes que seu irmão viu. Com a palma da mão, acertou em cheio a ponta do nariz do rapaz, e ele se afastou imediatamente.
Exceto que não foi nada como nos filmes, com gritos e torrentes de sangue. Ela teve certeza de bater forte o suficiente para quebrá-lo, mas o nariz não entortou e ela não ouviu barulho algum. Um tímido filete de sangue escorreu.
Ela não deu tempo para uma reação por parte do agressor, pondo-se a correr a toda sua capacidade de volta para a Paragon, gritando por Adam e Peter e por qualquer socorro que pudesse receber. Muito antes de chegar à metade do caminho, o trovão da motocicleta rugiu por todo o lugar. Lílian achou que estaria morta muito antes de rever o irmão e o amigo, mas o som da moto não se aproximava, se tornava mais distante.

10
Era a segunda vez em noites consecutivas que a Dep. de Polícia de Roule County recebia um chamado do Antiquário Paragon. Diferente da noite anterior, esta ligação seria uma queixa sobre a filha do Chefe de Polícia, Lílian Belmont, sobre um possível assédio.
Martin Belmont estava terminado de assinar as ocorrências sem importâncias do dia para encerrar sua noite. Algumas pichações de muro, invasões de propriedade, reclamações de invasão de propriedade e só. Coisas do dia a dia, como ele já estava acostumado a lidar.
O telefone tocou do lado de fora de sua sala. Mais uma. Pensou, torcendo para que fosse algo dispensável.
— Geoffrey, Bob, cuidem dessa pra mim, estou encerrando por hoje! – avisou em um tom de voz potente de sua sala. Bateu os papéis na mesa e deixou-os numa pastas carmim, apagando a luminária. Puxando o casaco da cadeira, vestiu-o às pressas. Se chegasse rápido em casa, poderia ter a oportunidade de dar boa-noite para os filhos antes que fossem se deitar para a escola. Havia dias que não fazia isso e sentia a falta deles como qualquer pai sentiria.
Saiu da sala enquanto Bob, o policial novato e sem talento especial, atendia as ligações. Martin estava passando direto para o corredor de saída, quando foi chamado de volta.
— Ahm, chefe... – Bob chamou, o telefone contra seu ombro para que não ouvissem do outro lado. – O senhor precisa atender essa.
Martin o olhou com reprovação. Novatos eram sempre assim. Sempre que ouviam uma voz um pouco mais descontrolada ao telefone e uma queixa de aparências um pouco menos convencionais, deixavam a coragem de lado e chamavam por apoio mais experiente. Martin bufou. Precisaria ter uma séria conversa com Bob sobre isso pela manhã.
—O que é desta vez? – foi em direção a ele para pegar o telefone.
— É sua filha, senhor.