sexta-feira, 26 de março de 2010

Projeção - A Batalha que é escrever

Eu já vi o filme inteiro, praticamente, na minha cabeça. Início, meio e fim; problemas e soluções; conversas e discussões; personagens e personalidades, lugares e cenários.

O esqueleto desse conto que chamei de Paragon já está pronto, a trama, quero dizer. Mas chegar até esse ponto de planejamento, que muitos acham difícil, é como engatinhar pra um escritor, e eu nem me considero um ESCRITOOOOOR...

Pensar no início, no meio e no fim de uma história, é muito bom e um ótimo começo, mas ter esses três momentos não significa que você tem uma história. Significa que você tem uma... Sinopse, digamos assim.
Vou usar de exemplo Harry Potter e a Pedra Filosofal porque tenho certeza que todo mundo já leu. Se não, saiam daqui ¬¬. Eis o início, o meio e o fim.
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Harry entra na escola e descobre que é famoso, e gosta da reviravolta positiva em sua vida.
Harry descobre que a vida nova não é tão fácil e que alguem está tentando matá-lo, e suspeita do Prof. Snape.
Harry enfrenta seu arquiinimigo, que revela ser o Prof. Quirrel, o vence, e fica tudo bem.
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É bem mais elaborado que isso, mas vocês entendem. Eu tenho o começo, o meio e o fim de Paragon, mas o que pouca gente leva em consideração é todo o resto.

Tipo o que vai se passar entre o começo do começo e o meio do começo, até o fim do começo. Pular direto pra trama é deselegante e o livro vai parecer um Bis: bom, mas não dura porra nenhuma. É preciso encher os espaços entre os pontos chave da trama, e os espaços entre os espaços menores. É ler e reler, pra ter coerência e retidão.

Dá trabalho. E muitas vezes tenho preguiça, mas paciência. Garanto a vocês que esse livro sai, cedo ou tarde.

É só eu tomar jeito.
Pensando aqui e agora comigo mesmo, acho que vou me obrigar todos os dias a escrever pelo menos um parágrafo, mesmo que eu não goste... De repente numa dessas vêm aquela enxurrada de idéias e eu consigo preencher um grande espaço.

Bom, vou indo lá.


Ah, a respeito do Quinto Capítulo, creio que já tem 3 páginas e ainda não tem título.

Beijos, moças. E abraços, caras.





PS.: Alguém aí gosta de vampiros? Aguardem.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Quarto Capítulo - Nate

1

Ele deslizou as pontas dos dedos pela perna da moça, subindo lentamente desde o joelho até onde ela permitiu; Jennifer logo segurou aquela mão, fitando-o com censura e ao mesmo tempo sensualidade. Ela sorriu logo em seguida, conforme ele se aproximava para beijá-la novamente. Bill entrelaçou os dedos pelos cabelos cacheados da moça, segurando sua nuca e sentiu ambas as mãos dela segurarem seu rosto.

Sem pressa, os dois se beijaram por quase um minuto, até que novamente a mão de Bill deslizou pelo ombro de pele suave da moça, empurrando para o lado a alça de sua blusa e desta vez ela não esboçou reação. Era a primeira vez tanto para ele quanto para ela e seria inesquecível mesmo que o namoro estivesse fadado a terminar dali a algumas semanas.

A noite lá fora estava quieta, com exceção da chuva, e fria a ponto de doer o corpo, mas ali dentro do carro os dois estavam aquecidos. O vidro ia embaçando lentamente, mais lentamente do que os dois iam se livrando de mais umas peças de roupa. Em alguns instantes, o sutiã de Jennifer foi jogado sobre o volante e Bill notou. Iria se lembrar daquela imagem por muito tempo.

—Eu te amo. – disse ela, com o rosto avermelhado por estar seminua na frente do namorado pela primeira vez. Tinha o braço cruzado na frente dos seios. Sorte dele que ela estava decidida a fazer aquilo esta noite. Nas condições atuais do namoro, Bill era o que ela diria ser: o cara certo; por quem ela tanto esperara esses anos. Semanas depois ela estaria chorando com a mãe, se culpando e perguntado a si mesma o que havia visto nele. Ele, por sua vez, já estaria em outra.

—Eu também... – sussurrou ao pé de seu ouvido, mordendo com gentileza seu pescoço.

As carícias inocentes de alguns minutos atrás foram se transformando em abraços mais calorosos e envolventes. Os dois já respiravam mais aceleradamente, talvez por estarem num carro fechado e o ar ficar mais escasso a cada minuto, talvez pela excitação, mas em ambos os casos, estava quente ali.

Ele a deitou no banco de trás com um sorriso no rosto, usando os casacos dos dois para colocar sob a cabeça dela. Queria deixá-la confortável. Com suas mãos delicadas e brancas, como todo seu corpo, Jennifer abriu o botão de sua calça jeans e baixou o zíper. Sobre ela, esperando com o coração batendo forte, Bill observava, tentando não ser apressado e deixá-la constrangida. Conhecia a namorada e sabia que deveria ser ela que ditaria o ritmo, mas estava difícil controlar seus hormônios. Ele ajudou-a a erguer a cintura para começar a baixar a calça, sendo o mais delicado possível. Ela própria se pronunciou e pôs as mãos na cintura de Bill, abrindo sua calça.

— Tira logo isso. – disse ela. Ele mal pôde acreditar no que ouviu. Seus hormônios finalmente tomaram lugar da razão, como já deveriam ter feito mais cedo.

Deitou-se por cima dela, sorrindo um tanto afobado. Depois de terem chegado tão longe, ela não poderia voltar atrás e isso o reconfortava muito.

Mas lá fora, de repente, o som alto de uma freada brusca cortou a noite, seguido do som vítreo do impacto. Algum carro tinha batido. Bill e Jennifer tentaram olhar pelas janelas, mas estavam embaçadas demais. Esticando-se para o banco da frente, ele esfregou a mão no vidro tentando ver o máximo possível. Um sedan preto havia colidido fortemente com um poste do outro lado da rua e havia sangue no pára-brisa, por dentro. Assustados, os dois mal acreditaram quando viram um robusto lobo preto saltar sobre o carro em que estavam e correr para longe, na chuva.

—O que foi isso? – perguntou a garota.

—Foi um... Acho que foi um... Cachorro. – respondeu, mesmo com sua mente gritando para ele que não poderia ter sido um cachorro. Era maior e tinha olhos amarelados. Que tipo de raça de cachorro era assim?

Bill ficou decepcionado quando virou o olhar para dentro do carro e viu Jennifer abotoando o sutiã nas costas.

— O que ta fazendo? – perguntou, incrédulo.

Mais incrédula ainda, Jennifer o olhou, vestindo-se rapidamente. Quem dera ela tivesse essa pressa na hora de tirá-las, ele pensou.

— Vamos lá ajudar! – respondeu, atrapalhada para vestir as calças.

— Mas....

— Alguém se machucou, Billy, olha o sangue! – disse, a voz afinando com o nervosismo.

Depois de vestidos, os dois saíram para a chuva e para o frio, apressados na direção do carro batido. Bill não podia acreditar que isso estava acontecendo. Quem sabe quanto tempo demoraria para que eles dois se encontrassem num momento como o de hoje. Que Deus o perdoasse, mas Bill desejou que o acidente tivesse ocorrido em outra rua. Seguindo sua namorada, ele foi até o carro acidentado, discando para a emergência em seu celular.

...

Depois de fugir da delegacia sendo alvejado, abandonar as roupas e correr nu no frio e na chuva, Nate estava ficando de mau humor. Mesmo agora sobre suas quatro patas, com o grosso pêlo negro para lhe proteger melhor do frio, sentindo-se livre como se nada pudesse impedi-lo de correr, ainda estava preocupado. Era difícil focar os pensamentos nesse estado, com a adrenalina fluindo por todo seu corpo em quantidades fatalmente elevadas; em vez disso, estava concentrado em enxergar com seus amarelados olhos lupinos. Era difícil distinguir formas e cores, mas o faro deveria ajudá-lo a chegar aonde ele queria, mesmo com o solo molhado para atrapalhá-lo.

Numa certa esquina, quase foi atropelado por um carro imprudente em alta velocidade, o que seria um infortúnio e uma maior perda de tempo.

Nate esticava cuidadosamente o focinho a cada dobra de esquina, sondando as ruas e se certificando de que não havia ninguém no caminho para vê-lo. Mesmo com sua cor casual, preta, seu tamanho o tornava suspeito, pois nenhum cachorro vira-lata da cidade tem porte comparável ao seu. Lembrou-se como seria mais adequado ter o pelo acinzentado como o de Aaron, uma camuflagem melhor na cidade. Além do tamanho e dos óbvios olhos amarelados no escuro da noite, o que chamaria mais atenção seria sua velocidade. Projetava-se para frente com a força das quatro patas, mas cuidadosamente devido ao chão molhado e traiçoeiro.

Com alguns planos já feitos em mente, ele adentrou um beco escuro, seguindo um rastro de odor humano. No escuro, Nate transformou-se de novo: seus pelos caíram, simplesmente, desfazendo-se no chão molhado; suas formas humanas brotaram de dentro da pele lupina, rasgando-a; o focinho encurtou-se até seu nariz e seus olhos voltaram à coloração castanha. Nu, com a visão humana agora, correu os olhos pelo local, vendo um grande latão de lixo virado e diversos pedaços de papelão jogados sobre eles. Se se prestasse atenção, era possível ouvir o ronco de um indigente debaixo das tralhas. Sem querer chamar muita atenção, Nate passou a mão pela garganta e a massageou, sentindo as cordas vocais se transformando ligeiramente e retorcendo os lábios num rosnado feroz que pareceu engolir o ruído forte de chuva, ecoando pelo lugar como um trovão. Algo dentro da lata de lixo se sobressaltou e se revirou, assustado. O indigente apareceu, erguendo os pedaços de papelão e olhando assustado para fora. Seu rosto ao ver o jovem nu e encharcado ali no beco, era de incredulidade. Seu coração batia acelerado, bombardeando adrenalina por seu corpo, deixando-o o alerta. Todos os seus músculos estão contraídos, não de frio, mas de medo. Nunca ouvira um rosnado como aquele, e não lhe importava que tipo de criatura o rapaz fosse, ele sabia em algum lugar no fundo de sua mente que deveria ter medo.

O sem-teto usava uma touca preta, com quase furo nenhum, mas muito suja. Um casaco vagabundo de couro sintético por cima de outro casaco vagabundo, e então, uma camisa azulada, quase cinza de tão velha. Nas pernas, uma bermuda imundíssima, mas inteira, que ia até os joelhos do homem. Nos pés, dois tênis diferentes e meias cumpridas, que iam até onde a bermuda terminava. Nate avaliou-as bem, em silêncio, sem mover um músculo.

— Ô! – chamou o sem-teto, erguendo o braço e abaixando-o. – Quê que tu quer? Xô! Essas coisa é minha!

Ele começou a gesticular para toda a outra tralha que estava espalhada pelo beco. Nate jamais teria imaginado que pertenciam a ele. Com uma lata de lixo virada, tudo aquilo parecia apenas tralhas e entulhos.

— Sua bermuda e seu casaco. – disse, estendendo a mão com a palma para cima.

— Hum! – o indigente desatou a resmungar coisas ininteligíveis e apontou-lhe o dedo, gesticulando para sair do seu “território”.

Nate deu um passo na direção do homem e este se encolheu rapidamente para o fundo do beco, erguendo um liquidificador e arremessando no rapaz. Ele protegeu o rosto com as mãos e defendeu-se do arremesso. O indigente apressou-se em sua direção, agitando algo prateado e reluzente no ar. O rapaz reparou, mas não se defendeu.

O sem-teto golpeou Nate três vezes, na barriga, e a lâmina do canivete abriu-lhe três fendas na pele, que começaram a sangrar imediatamente; no entanto, o rapaz não esboçou reação. O indigente ergueu o rosto e o encarou, mais alto do que ele próprio. Sem pressa, Nate segurou o homem pelas roupas e o arrastou até a parede do beco, onde lhe segurou a cabeça e chocou-a contra os tijolos. O baque surdo na chuva foi alto e o homem caiu inconsciente no chão. Nate começou a despi-lo antes que as roupas se molhassem demais.

O casaco estava apertado em seu corpo, mas serviria por enquanto; quanto à bermuda, depois de colocá-la, teve de retirar várias coisas dos bolsos, as quais variavam desde molhos de chaves, uma chave de fenda, panfletos diversos e até restos de comida. Deixou o pobre sem-teto com o restante de suas coisas e o colocou debaixo dos papelões novamente, para que ele não morresse de frio. Se não tivesse abandonado sua carteira na calça, agora na delegacia, teria deixado algum dinheiro para o homem. Ergueu-se, suspendendo um recorte largo de papelão sobre sua cabeça para protegê-lo da chuva. Os cortes no abdome já não estavam mais lá. Caminhou a passos fingidos, como um bêbado, oscilando ao redor do próprio eixo, mas sem parecer exagerado. Seu rosto não podia ser visto e mesmo que o quarteto estivesse tentando rastreá-lo, a chuva e as roupas fedegosas que agora vestia seriam grandíssimos empecilhos para quem o tentasse farejar. Pelo menos por esta noite, ou assim ele se convencia, estava a salvo.

Atravessou as largas ruas do centro da cidade em direção à praça da região, passando por ela, deserta, e pela pequena igreja ali perto, no mesmo quarteirão. Passando-a, logo a seu lado havia uma casa imponente, de frente larga e jardim bem cuidado, com garagem, segundo andar, chaminé e outros requintes. Algumas poucas e fracas luzes amarelas estavam acesas dentro da casa, mas apenas uma lhe interessava. A da janela do segundo andar. Abandonando o pedaço de papelão a um poste, saltou furtivamente pelo cercado e caminhou curvado até debaixo da janela do que parecia ser a sala de estar. Esticando o pescoço, ele viu através da janela e da fina cortina, um senhor sentado no canto do sofá, com uma xícara de café em mãos, assistindo a um programa qualquer. Cruzando a sala ele viu a entrada de uma cozinha e uma senhora gorducha trabalhando nela. Baixou o olhar e arrastou-se até a lateral da casa, apoiando as mãos entre as ripas de madeira das quais era feita, escalando-a com habilidade.

...

Ingrid deu um pequeno grito de susto quando viu uma cabeça no patamar de sua janela, no segundo andar, naquela noite chuvosa. Noite que fora antecedida por uma manhã cheia, na qual ela tivera de se conter em sua sala de aula para não deixar-se atrair pelo novato Nate. Atração essa que não era física, mas de puro interesse e curiosidade, esperando ansiosa pela promessa que ele havia a feito. Promessa de respostas e esclarecimento. Com as pequenas mãos trêmulas, ela abriu a janela para o frio da noite e deixou que Natanel entrasse em seu quarto, sem se importar com o modo como estava vestida, prestes a ir se deitar.

Inevitavelmente, sua mente escorregou para o dia anterior, quando conhecera o rapaz.

2

Era a terceira semana seguida que Ingrid ficava em casa sozinha às tardes. O pai em reuniões, palestras e outros nomes que ele mencionava para agarrar-se ao trabalho, agora que o casamento ia de mal a pior. A mãe, que nunca tivera emprego, decidira começar a prestar um pequeno serviço num salão de beleza, sequer mostrando a cara até as 20:00. O irmão, Terrance, por falta de alternativa seu familiar mais próximo e que a mais compreendia, estava dedicando essas semanas do ano a terminar de organizar o time do colégio.

Ela trocava de canais rapidamente, evitando a todo custo seus livros e tarefas a fazer. O estudo e a solidão a deixariam, senão depressiva, desanimada de encarar o resto do dia. Matar tempo com a TV, por mais precário que pudesse ser, era sua melhor alternativa.

E sua tarde foi salva quando sua campainha soou, às 15:24 daquela terça-feira modorrenta. Ela abriu a porta de maneira informal, ansiosa para ver quem era e arrependeu-se disso. Vendo-o agora pela primeira vez,desejou tê-la aberto com um belo vestido e um mínimo de maquiagem. O rapaz parecia já ciente desse efeito de atração magnética que tinha nas mulheres, pois não esboçou reação quando Ingrid gaguejou levemente para cumprimentá-lo.

Ele se apresentou com um simpaticíssimo sorriso, do mesmo modo como faria com Lílian mais tarde naquela noite, embora seu interesse fosse diferente para cada uma das duas. Pareceu contar mais sobre si mesmo do que ela precisava saber, mas de forma alguma ela o atrapalharia. O pensamento não passou por sua cabeça. Em poucos minutos, já estavam papeando em sua varanda. Ingrid, a garota estudiosa e Nate, o forasteiro desamparado. Disse que viera de Connecticut num intercâmbio e mais algumas coisas sobre si mesmo.

Ele a chamou para uma caminhada e ela aceitou, sem pestanejar, coisa imprudente que não faria normalmente. Mas havia algo em Nate, em sua postura, até mesmo no seu cheiro, que a fazia se sentir protegida.

Foi quando as coisas começaram a cair e desabar sobre sua cabeça, fragmentando tudo aquilo que ela chamava de racionalidade. Nate a seduziu, devagar e com muita gentileza, mas estava prestes a beijá-la. Muito antes de ele insinuar o beijo, Ingrid já tinha se entregado ao rapaz e a seu poder de atração. No entanto, momentos antes de seus lábios se tocarem, ele desviou a boca e cravou os dentes em seu ombro, mordendo forte, segurando-a pelos braços.

Desnecessário dizer que ela sacudiu a si mesma para fora da platônica atração que tinha por ele e surtou.

Ele a mordera!

E de verdade! Ela podia sentir o sangue escorrendo por seu ombro, mas não virava o rosto para olhar. Estava com os olhos vidrados no rapaz, para quem brandia punhos e a quem esmurrava, insultando-o. Ele se afastou, pedindo desculpas inaceitáveis e sem o menor sentimento de culpa. Ele se afastou e Ingrid, furiosa, confusa e abalada, voltou para casa.

Sua tarde, a qual ela já esperava que fosse difícil, foi insuportável, mas muito diferente do que ela esperava.

A mordida em seu ombro desatou a coçar debaixo do curativo improvisado que fizera. Tentando explicar para si mesma, ela raciocinou que deveria ser normal, ou algum tipo de inflamação, no pior dos casos. Não haveria problema algum. Ele jamais contaria isso para ninguém e fingiria que essa tarde jamais existira.

Mas a mordida não parou de coçar. Coçava mais e mais. Aos poucos ela foi cedendo e esfregando o local por cima curativo. E começou a fazer isso mais freqüentemente. Até o ponto em que não agüentou mais e arrancou o curativo para cravar as unhas na própria pele, enlouquecida com a coceira.

Surpreendeu-se outra vez naquele dia, ao ver que debaixo do curativo, não havia ferida nenhuma, nem mancha, nem sinal de qualquer lesão. Completamente limpa.

Esse foi o marco. Ingrid começou a sentir-se estranha. Sentia que caminhava diferente, que andava diferente, agora perambulando pela casa. Encarava-se nos espelhos e via a si mesma, mas algo estava diferente. Seus olhos, sua postura?

Antes de terminar seu auto-questionamento, ela sentiu um cheiro, forte e familiar, bem ali perto. Pelo canto do espelho viu que, logo atrás de si, estava Nate, encostado na parede, com um sorriso orgulhoso no rosto.

3

O cheiro que Ingrid sentia agora poderia ser de qualquer coisa, menos aquele do qual se lembrava de Nate. Ele fedia a suor, urina, fezes, lixo, o quer que fosse, mas era difícil ficar no mesmo cômodo que ele com esse miasma que ele exalava agora. O cheiro do qual ela se lembrava era nostálgico, como um bom e velho cobertor grosso, com um cheiro forte e um pouco amargo.

Nate abriu o casaco do indigente que roubara e o tirou, procurando aonde deixá-lo. Apenas um olhar de esguelha para a expressão de Ingrid e ele notou que o cheiro não a agradava. Pior ainda, poderia chamar atenção de seus familiares. Abriu uma pequena brecha na janela e deixou-o cair para fora. Livraria-se daquilo depois. Ainda com a janela aberta, apressou-se e abriu o zíper da bermuda e baixou-a duma só vez. Ingrid virou o rosto imediatamente, sentindo suas bochechas corarem, fixando o olhar na tela de seu computador, que ,desligada, refletia o rapaz, nu, de costas, atirando a bermuda pela janela. Ele fechou-a novamente e voltou o rosto para Ingrid, ainda recusando-se a olhar.

— Quem deveria ter vergonha sou eu. – constatou. A morena chegou a abrir a boca para rebater, mas achou melhor ficar em silêncio. Ele continuou, sentando-se em sua cama. – Pode me conseguir uma calça do seu irmão pra eu vestir?

Ela levantou da cadeira, incrédula e virou-se para ele. Ele estava de costas, sentado à beira da cama, esperando calmamente.

— Você é louco? – indagou, tentando manter a voz um sussurro. – Como aparece aqui a essa hora, pela minha janela, com essas roupas fedidas?

Ele olhou por cima do ombro, com um meio sorriso.

— Da próxima vez eu bato na porta da frente, pelado.

Ingrid engoliu em seco e passou as mãos pelos pretos cabelos ondulados.

—Você prometeu que ia me dar respostas! Eu fiz a ligação que você pediu!

— E você quer com calça ou sem calça? – mais uma vez, ele sorrira por cima do ombro e Ingrid se calou de vez, tocando a maçaneta da porta e abrindo-a em silêncio.

— Fique embaixo da cama, se alguém entrar aqui e vir você... – ela orientou, mas algo a dizia que ele não a levaria em consideração.

Saiu pelo corredor acarpetado, seus pés sem fazer ruído, até a porta ao lado. O quarto de Terrance era, ela gostava de comparar, como um quarto de “garoto universitário de cinema estereotipado”. Ao abrir a porta, ela viu roupas, calçados, papéis escolares e até embalagens de comida pelo chão. Numa cama no meio do quarto, ele estava deitado, dormindo já um profundo sono, esgotado dos treinos da equipe de basquete escolar. Caminhando por cima das roupas, no escuro do quarto do irmão, ela correu o olhar a procura de algum jeans que estivesse à mão. Foram necessários poucos segundos para que ela se tocasse que estava pisando em um. Apressada, ele o pegou nos braços e voltou a passos largos para seu quarto. No corredor, topou com sua mãe, que inocentemente fez um comentário que a fez travar o ar dos pulmões.

— Filha, ponha sua roupa suja pra lavar, não deixe lá pelo quarto. Lá dentro está um cheiro...

Ela quase correu até sua porta e a abriu rapidamente, batendo-a as suas costas. O quarto estava vazio a princípio, mas logo ela notou um braço se esticando de debaixo da cama, e Nate rastejando para fora. Ela passou a chave na porta de seu quarto e atirou-lhe a calça, tentando ignorar o fato de um homem extremamente atraente estar nu em seu quarto. Lutou bravamente para controlar seu olhar e mantê-lo acima da linha da cintura dele, enquanto o via se vestir.

— Você... De onde você veio? – perguntou, encostando as costas contra a porta.

— Tem certeza que quer começar por essa pergunta? – ele abotoou a calça, frouxa e larga, pendurada na linha de sua cintura.

— Sim, tenho! – firmou, decidida.

Nate ergueu as sobrancelhas e massageou o pescoço, olhando pelo quarto da moça, tomando nota mental de seus pertences como um passatempo.

— Fugi da delegacia.

Nate se surpreendeu honestamente, pois esperava uma contestação imediata por parte da moça, que permaneceu em silêncio por um longo tempo.

— Então é verdade...? Você é o assassino? Matou o cara da locadora? – ela ouvira os boatos. Não quisera acreditar a princípio, mas tudo indicava que...

— Não. Eu não mato gente. Pelo menos, não de propósito. – disse, e para ele soou engraçado. Ingrid, no entanto, estava cada vez mais incrédula.

— Você prometeu que ia me explicar tudo, me dar as respostas que eu queria! Porque eu estou me sentindo tão esquisita? Porque todos os homens da escola pareceram me olhar demais hoje; por que aquele ferimento fechou tão rápido; porque diabos, em primeiro lugar, você me mordeu? Quem é você?

Nate sorriu humilde, mostrando os dentes. Não haveria modo fácil de contá-la. Que se tenha a verdade, então, pensou ele.

— Meu nome é Natanel Brady Hensen. Tenho 20 anos. – ele ergueu o olhar para Ingrid, medindo as palavras que diria pela primeira vez em quase cinco anos. – Eu sou um lobisomem.

Os olhos de Ingrid piscaram repetidas vezes enquanto ela continuava encostada na porta, em absoluto silêncio. O único abajur aceso de seu quarto dava ao lugar um aspecto tranqüilo e quente, com a cúpula amarela distribuindo a luz de forma igual pelo espaço. O rosto de Nate, semi iluminado, estava sério agora, diferente do comum. Tinha o cenho franzido e muitos pensamentos na cabeça. Novamente, não sabia o que esperar de Ingrid, mais especificamente, de sua reação. Talvez estivesse esperando uma risada histérica seguida de negações irracionais, mas ela abaixou a cabeça, movendo os lábios, parecendo falar consigo mesma.

— O que você quer dizer com isso, Natanael? – perguntou, um tom choroso na voz.

Os cabelos negros lhe caíam na frente do rosto e com a pouca luz era impossível vê-la. Nate ouviu uma fungada e pôs uma mão na cintura, outra pelos cabelos.

— Por favor. – ele fez uma pausa, tomando cuidado com suas palavras. A moça estava chorando. – Me chama de Nate. E eu não sei se você realmente deveria saber disso tudo agora.

Ingrid sacudiu a cabeça, passando as mãos pelo rosto ainda oculto.

— Eu quero saber. Me explica.

Ela não sabia por que chorava. Mas sentia-se vulnerável, ferida, confusa e desamparada.

Nate respirou fundo, pesando se deveria mesmo entregar o que ela precisava, agora que parecia à beira de um penhasco emocional. Começava a se perguntar se havia feito bem em escolhê-la. Só restava descobrir.

—Lobisomem, como em licantropo... Homem lobo. Você conhece folclores, filmes, lendas. – respondeu metodicamente. Ele próprio nunca havia colocado dessa forma e parecia difícil de acreditar.

Novamente ela permaneceu em silêncio por um tempo. Quando falou, a voz saiu melosa.

— E você quer que eu acredite nisso? Que você se transforma num homem-lobo na lua cheia? – ela sacudiu a cabeça de novo. – Você é maluco! Sai do meu quarto, some daqui! Vou chamar a polícia!

Ela ergueu o rosto enquanto falava mais alto, decidida a encará-lo. Ele a seduzira e a mordera, como um louco. Horas depois na mesma tarde ela começou a sentir mudanças no corpo, dentre elas a recuperação acelerada de ferimentos; que podia sentir cheiros mais fortes agora, capaz de saber diferenciar o odor de seus familiares. Quando se via no espelho, reconhecia seu rosto, seu corpo, mas algo estava diferente, era como se visse a si mesma, no corpo de outra pessoa. Na escola, praticamente todos os homens pelos quais ela passara, viraram os pescoços para olhá-la um pouco mais. Pela primeira vez em sua vida escolar, ela recebera cantadas no corredor, as quais ignorou piamente.

Mas quando tentou encarar Nate, procurou-o pelo quarto com o olhar, mas ali onde ele estivera em pé, apenas a calça jeans de seu irmão jazia solta no chão. Foi quando viu, bem a seus pés, a fuça preta de um imenso lobo de olhos amarelados, com o pescoço levemente esticado, fitando-a com tanta intensidade que ela não conseguiu gritar com o susto.

Nate, o lobo, soltou um curto ganido, baixando as orelhas para trás. Usando o focinho, tocou a mão de Ingrid. Ela a puxou imediatamente, sentindo o coração bombardeado em seu peito. O lobo levantou-se e espreguiçou-se, esticando as patas traseiras e jogando o pescoço para trás. Mesmo sobre as quatro patas, o rapaz ainda pensava da mesma forma e concluiu que talvez a deixasse mais calma se agisse de uma forma canina amigável.

Num salto, deitou-se na cama dela, depois de girar em torno do próprio corpo e repousou a cabeça sobre as patas.

Ingrid passou as pequenas mãos pelos cabelos, fechando os olhos. Não podia acreditar no que acabara de ver. Um lobo em seu quarto... E era Nate. Como era possível... Ela assustou-se quando viu, novamente homem, Nate, vestindo a calça rapidamente.

— Desculpa se te assustei, mas eu não sabia como te fazer acreditar. – disse, sem querer olhá-la no rosto e ver sua expressão de perplexidade. - Acho que foi o melhor que eu tinha pra fazer, certo?

—Como isso é possível? O quê foi isso que eu acabei de ver? Você... Você me drogou, me deu alguma coisa... – ela negava, tentando racionalizar, e Natanael não podia culpá-la. Ela foi até a janela e a abriu, respirando o ar gelado da noite por algum tempo, voltando a falar. – Quando você me mordeu... Foi isso, quando você me mordeu, me deu algum alucinógeno...

— Pára com isso. – ele projetou-se na direção dela, cobrindo o espaço entre eles com um só passo. Tapou-lhe a boca com uma mão, e puxou-a pela cintura com outra. Estavam colados corpo a corpo, olho no olho, com o vento frio da noite soprando suas peles pouco vestidas, arrepiando-os.

Ingrid calou-se sem reação. Nem mesmo pensamentos passavam por sua cabeça nesse momento e tudo o que ela via era a profundidade do olhar do homem que a tinha agora nos braços com tanta certeza de seu aperto, de sua força, que ela sequer cogitava se afastar.

— Olhe pra mim. E diga que acredita em mim. Mas diga a verdade, porque se eu vir hesitação nos seus olhos eu salto pra fora dessa janela e você nunca mais vai me ver, nem ter as respostas que você quer.

Os dois pares de olhos castanhos se encaravam. As sobrancelhas de Nate estavam arqueadas sobre os seus, dando-lhe uma expressão quase agressiva. Já os de Ingrid vibraram, tremendo sem certeza de para onde olhar, sem saber o que dizer.

Lentamente, ele soltou a mão que cobria a boca da moça e ela arfou, voltando a respirar com fulgor.

— Você acredita em mim? – ele perguntou de novo, cerrando o olhar e apertando-a mais forte contra seu corpo. Ela própria não sabia o que responder, mas ele exigira uma resposta. Ali abraçada a Nate, era como se a vontade dele fosse maior e mais gritante que sua própria consciência.

— Eu... Eu não sei o que acreditar. – disse, tentando não hesitar, nem afastar o olhar.

Ele assentiu e afrouxou o abraço, mas sem soltá-la. Com o braço livre, fechou a janela atrás deles, sem mover o olhar por sequer um segundo.

— Bom. Já é um começo. Vou te dizer o que vamos fazer: finja que acredita, que isso é um sonho, e que no fim da noite você vai acordar. Pergunte tudo o que quiser, como se fosse só de curiosidade. Assim fica mais fácil pra você?

Ela respirou profundamente, já se sentindo mais regulada, mais controlada. De repente já não tinha mais vontade de chorar, nem sentia o coração batendo tão forte que seu peito parecia ceder a cada momento. Por fim, ela fez que sim com a cabeça.

— Ótimo. – Nate sorriu de lado, segurando-a com delicadeza pelo braço e sentando-a na cama. Ele afastou-se alguns passos para trás e deixou-se cair na cadeira giratória próxima a seu computador.

Por um tempo, ela não o olhou, parecendo sondar o próprio quarto, acostumando-se com a idéia de sonho que ele propusera. Ele não a apressou.

— Então... – a voz saiu rouca, e ela pigarreou, recomeçando. – Então... Lobisomem... Como funciona isso? É... É como nos filmes, com a lua cheia e tal?

Nate sorriu, apoiando o rosto com a mão.

— Não. Quer dizer, um pouco. Nós ficamos um pouco mais agitados à Lua Cheia, mas podemos mudar de forma quando queremos. Você acabou de me ver lobo.

— Ah... – ela fez que sim com a cabeça, com se dissesse pra si mesma: É óbvio. Digeriu a resposta. – E existem muitos de vocês?

— Bom... Depende do local, na Europa existem muitos mais do que aqui.

— E... Como... Como você se tornou um? – ela continuava na defensiva, fazendo as perguntas com cuidado.

—Calma... Nos filmes as pessoas se tornam lobisomens, mas na realidade não é bem assim. Um lobisomem só pode ser descendente de outro lobisomem.

— Então... Seu pai era um lobisomem? – ela tentou durante um bom tempo, mas a idéia ainda era rejeitada por sua cabeça. Ela acabou soltando um risinho, ridicularizando a si mesma por estar fazendo esse jogo.

Nate logo percebeu que ela estava voltando à racionalidade e que as coisas poderiam acabar por ali.

— Continue, você está indo bem. – Disse, e ela ergueu a cabeça novamente, cruzando as pernas sobre a cama, pondo os cabelos para trás da orelha. – E não, meu pai era um cara normal, mas era portador. Na verdade nós não sabemos muito da hereditariedade. Raramente se manifesta, normalmente não.

Ingrid calou-se, tentando ordenar os pensamentos que rodopiavam por sua cabeça. Ainda havia uma voz bradando em sua mente, forçando-a a desacreditar no que o rapaz vinha lhe dizendo, todo aquele folclore e coisas de contos de fadas, loucuras. A outra, em contraponto, usava argumentos incontestáveis, baseados no que ela acabara de presenciar com Nate, e com seu próprio corpo ao longo dos dias, desde a mordida.

—E é como nos filmes? A parte da mordida?

Nate sorriu, balançando a cabeça negativamente.

— Não sei que tipo de filmes você viu então não posso dizer para esquecer tudo o que viu... Alguns acertam em algumas partes, mas a maioria deles nos banaliza. A mordida é simbólica. É um catalisador.

— Catalisador de quê?

— Da transformação. Como eu disse, é simbólica. Sendo lobisomem, a pessoa vai sentir a coisa manifestar mais cedo ou mais tarde. A mordida só faz com que seja mais cedo. Mesmo se eu não tivesse te mordido, e sinto muito por ter mordido, - agora Ingrid pôde notar verdade no pedido de desculpas. - talvez semana que vem, talvez daqui a dez anos o sangue tivesse manifestado.

Ela ficou em silêncio, passando as pontas dos dedos pelo ombro onde tinha sido mordida.

— Então eu... Você me... Eu vou... – as palavras simplesmente não saíam. Mesmo que o inexplicável estivesse dançando diante de seus olhos, as vozes de sua cabeça não conseguiam aceitar a idéia de que dali a um tempo ela se tornaria um monstro.

— Não. Você não é uma de nós. – disse, num tom um tanto sombrio, com uma voz calculada. Tinhas as mãos cruzadas na frente do peito, com o rosto meio escuro, meio iluminado.

Ela pôde jurar que por um momento, no lugar dos olhos castanhos do rapaz, viu os dois círculos amarelados, os mesmos olhos do lobo preto, mas logo afastou a possibilidade. Era apenas fruto de sua imaginação. Passado esse susto, ela deixou de tocar o próprio ombro, confusa com o que acabara de ouvir.

— Mas você me mordeu... Eu vi o ferimento se fechar... O meu olfato... Eu sinto cheiro da minha família em todo lugar, nas roupas, no carro, no ar...

Nate concordou com a cabeça, já esperando ouvir esses argumentos.

— Mas você é diferente, Ingrid. Você tem o sangue fraco, é como se fosse só metade loba.

Ela afundou o rosto nas mãos, tentando segurar um grito de indignação.

— Isso tudo é demais pra mim... Por que isso tá acontecendo comigo? Eu sou normal, tenho uma família normal... – ela falava para si mesma, abafando as palavras com as mãos na frente do rosto.

— Você é o que nós chamamos de Prima. Pode fazer exatamente as mesmas coisas que eu, exceto se transformar... – ele continuou, ignorando o fato de ela falar sozinha.

— E o que você consegue fazer, por exemplo? – perguntou, aumentando um pouco o tom de voz. Nate sentiu uma grande dose de desdém na pergunta, mas relevou.

— Regeneração. – ele começou, contando nos dedos. – Sentidos hipersensíveis. Capacidades físicas superiores. Atração magnética.

Ela ficou em silêncio, estudando a expressão e o modo de falar de Nate. Era tão natural que, mesmo que ela quisesse duvidar, não conseguiria. Ele podia apenas ser louco por acreditar em tantas coisas fantasiosas, mas então ela também o seria. A imagem do lobo preto deitado em sua cama simplesmente não saía de sua cabeça.

— Atração magnética? – perguntou ela. Convenceu-se a continuar no sonho que ele propusera. Talvez ajudasse a silenciar as vozes da razão que discutiam em sua cabeça.

— É. A partir do momento em que mudamos, nossa pele muda de aspecto. Libera uma substância que atrai as pessoas. Por isso tinha tantos homens te olhando hoje. Eles não sabem porquê e nunca vão saber. Só vão te querer.

— Não fala assim! – ela arremessou sua almofada em formato de tartaruga sobre Nate. Ele riu e pegou a pelúcia do chão, analisando-a.

Ingrid mordeu o lábio, tentando decidir se faria a pergunta que queria fazer. Poderia não gostar da resposta, mas ela constatou que isso não importava mais. A conversa já tinha tomado um rumo em que o medo das perguntas e de suas respostas já deveria ser deixado de lado.

—Então é por isso que eu... me sinto atraída por você?

Nate parou de movimentar a pelúcia pelas mãos, fixando o olhar no rosto de Ingrid. Ela conseguiu se disciplinar o suficiente para não desviar seu olhar inseguro do olhar fuzilante do rapaz.

— É. É por isso. Mas não se preocupe, vai passar. Logo você vai ficar imune a esse feromônios e vai poder se concentrar em me ajudar. Do contrário você ia enlouquecer quando visse os outros.

Ingrid teve sua atenção atraída, inevitavelmente.

— Outros?

Nate sorriu.

— É. Agora precisamos falar sobre mim...

Ingrid ficou em silêncio. Seu coração, controlado até alguns momentos atrás, agora começava a palpitar. O que este estranho homem seminu em seu quarto teria a mais para lhe contar?

— Mas antes, eu queria comer alguma coisa. Eu poderia ir lá embaixo fazer um sanduíche para mim, mas acho que você prefere ir no meu lugar, né? – insinuou, caminhando até a porta e estendendo o braço para a maçaneta.

Ingrid saltou da cama e deu-lhe um tapa no braço, afastando-o da porta com um meio sorriso. O rapaz sabia diverti-la. Ela colocou a mão sobre o peito de Nate e o empurrou para trás. Ele se afastou, sorrindo.

— Espere aqui! – disse ela, censurando-o num sussurro ríspido, abrindo a porta com cuidado.

— Também estou com sede... – disse ele, mas a morena já havia saído.

Ingrid seguiu pelo corredor acarpetado a passos macios e ouviu sua mãe já se preparando para dormir, na porta em frente ao quarto de seu irmão. Lá em baixo, podia ouvir misturado ao ruído do temporal o som da televisão que seu pai assistia, matando o tempo. Depois de descer as escadas, passou pela sala por trás do sofá, sem ser percebida. Como ela suspeitava, agora com seus novos “artifícios” ela conseguia ser muito mais silenciosa do que normalmente seria. Mesmo que dali a algumas semanas ou meses ela decidisse desacreditar em tudo que Nate a dissera, as provas irrefutáveis ainda estariam com ela. Dentro dela, com suas mudanças.

O chão frio da cozinha a despertou de seus devaneios e ela tentou fazer tudo sem ter de acender a luz. Achou divertido testar, agora que tinha muito mais habilidade, sua noção de espaço e controle de movimentos. Os pães, a faca e a geléia, todos foram pegos com facilidade, e em poucos minutos tinha feito dois sanduíches. Ainda que no escuro, ela sabia que não havia sujado nada. A confiança que sentia em seu controle era maravilhosa e para uma moça que nunca fora muito segura, era indescritível.

Novamente em seu quarto, encontrou Nate de pé ao lado de sua mesa de cabeceira, folheando um livro.

— Você lê muito? – perguntou ele, sem levantar o olhar.

Ela pôs o prato com os dois sanduíches sobre a mesa do computador e recostou sobre ela.

— Não tanto quanto eu queria, não tenho tanto tempo. O que você considera muito?

O rapaz fechou o livro e o colocou de volta no lugar, da forma como o achara. Um costume que adquirira ao longo dos anos, de tanto invadir casas.

— Uns 15 livros por ano.

Ingrid soltou uma risadinha e jogou o cabelo por cima do ombro. Qualquer outro rapaz teria se maravilhado com a graça desse movimento, mas Nate o tratou com indiferença.

— Eu leio bem mais que isso. Uns 30 talvez.

Nate jogou-se sobre a cama e cruzou as pernas, mexendo nos cabelos. A moça veio gentilmente até ele e lhe entregou o prato com os sanduíches. Ele comeu devagar, processando com calma em sua cabeça como faria para contá-la.

Ingrid o observou com ansiedade, mas controlou-se e manteve o silêncio. Estava curiosa e preocupada com o quer que ele fosse dizer, mas não voltaria atrás agora. Se seria uma noite de histórias loucas, ela ouviria todas elas.

— Vamos tentar assim: o que você diria sobre eu estar sendo caçado por outros como eu?

— Supondo que eu acreditasse... – ela ponderou. – Iria perguntar por quê.

Ele esfregou as mãos, balançando a cabeça positivamente.

— E o que mais iria querer saber?

— Quem são esses outros e... – ela se lembrou do assassinato na rua de Adam. – Do que eles seriam capazes de fazer.

— É complicado... Mas eles acreditam que eu fiz algo de que não sou culpado e querem... Bem, querem me matar.

Ingrid engoliu em seco.

— Por isso você fugiu pra cá?

— Eu já fugi para vários lugares. Faz mais de 6 meses que estou tentando despistá-los, mas não consigo simplesmente. Eles são... excepcionais.

— Então... Eles sabem que você está aqui? Vêm te pegar?

— Eu achava que não, até ter sido preso. No interrogatório eu vi uma foto do homem que foi morto na locadora e notei uma mordida – ele levantou o pulso e mostrou onde fora. – aqui. Aí eu soube que eles estavam aqui. Um deles, o mais agressivo, tem um tipo de TOC¹, e sempre morde as vítimas no pulso. Ele se chama Aaron.

— Não entendi... Porque ele matou o homem da locadora?

— Para assustar Adam. Deixá-lo acuado para alguns dias depois matá-lo também.

Ingrid calou-se subitamente. Não sabia, não tinha como saber que as coisas eram tão perigosas quanto se revelavam agora. Adam, seu amigo, que sequer conhecia Nate, não deveria estar envolvido nisso.

— Porque o Adam? O que ele tem a ver com tudo isso, porque eu tive que ligar pra ele afinal?

Nate levantou as palmas das mãos para Ingrid, pedindo-a calma. Se deixasse a conversa perder o ritmo, ela acabaria perdendo a disposição de acreditar e ele seria expulso pela janela antes de perceber.

— Eu estou na cidade há 3 semanas. Escondido em pequenos hotéis, só caminhando, observando, tudo sem ser notado, sem trazer atenção. Provavelmente, Aaron esteve me seguindo... E notou minha atenção no Adam. Percebeu que eu iria precisar dele, e agora quer tirá-lo do caminho.

— E por que você precisaria do Adam? Esses caras são tão radicais a ponto de matar outras pessoas pra chegar até você?

— São. Sem dúvida. Alguns mais, outros menos. É Aaron que está atrás de mim, não podia ser pior.

— Porque você precisa do Adam?

— Porque eu não vou mais fugir de cidade em cidade, estado em estado. Eu vou enfrentá-los. E Adam vai me ajudar.

— E como você acha que ele vai conseguir te ajudar contra um bando de lobisomens?

— Alcatéia. – respondeu ele.

— O quê?!

— Bando não, alcatéia.

— Ugh! – Ingrid gemeu de raiva e bateu os pulsos no colo. – Responde, Nate, você quer que o Adam morra?

—Óbvio que não, ele é um dos únicos na região que pode me ajudar. – Ingrid não notou no exato momento, porém, mais tarde, quando se lembrasse da conversa, ficaria particularmente confusa por ele ter dito “um dos únicos” e não “único”. – Você não entendeu, eles vão me matar, Ingrid. E de qualquer forma, depois de mim, iriam chegar até você e ao Adam.

— Por que o Adam?!

— Vai ficar fácil farejá-lo quando ele mudar. Porque ele tem sangue de lobo também.

Ingrid sentiu as palavras paradas em sua garganta, forçando-as a sair, mas sem conseguir.

— Como... Como eu? – perguntou, insegura, com medo da resposta que ouviria.

— Não. Como eu. Adam é um de nós.

Ingrid não tinha palavras para se expressar. Nem sequer parecia sentir nada, o que acometia a moça agora era uma coisa sem nome. Como era possível que em apenas dois dias, uma pessoa entrasse em sua vida e simplesmente a mudasse radicalmente, sem chance de mudar de volta? E como essa mudança, arriscada para ela própria, poderia trazer tanta ameaça para seus parentes e seu amigo?

E o som de um uivo do lado de fora penetrou pelas paredes do quarto, pela janela fechada, engolindo o ruído da chuva e invadindo os ouvidos de Ingrid, fazendo-a sentir estremecer, congelar por dentro.

Nate franziu o cenho, mudando subitamente de uma expressão indiferente e uma postura relaxada para uma face dura, rígida e uma postura eriçada. Ele levantou-se e aproximou-se da janela, enquanto Ingrid permanecia sentada na cadeira, com os pulmões cheios de ar, sem ousar respirar. Ele levantou a janela e prostrou o torso para fora, jogando o rosto para o alto e fungando algumas vezes. O cheiro de chuva, dos odores doces do quarto da moça, e aqueles próprios com os quais ele havia se sujado ao usar as roupas do mendigo adentraram suas narinas, mas ele os ignorou e continuou a tentar farejar. O vento soprava bem, e a seu favor, mas não trazia nenhum odor com o qual devesse se preocupar. Ele recolheu-se para dentro.

Ingrid tinha o rosto afundando nas mãos, e parecia chorar em silêncio. O rapaz não se preocupou com sensibilidade:

— Isso significa que você acredita?

Ela não respondeu. Na verdade, pareceu nem mesmo ouvir.

— Não precisa ter medo, o uivo foi longe. É bom você se acostumar, eles vão uivar toda noite até me encontrarem.

Novamente, sem reação por parte da moça.

— Quando vamos falar com ele? – ela perguntou com a voz abafada por entre as mãos depois de quase um minuto inteiro.

Nate não respondeu a princípio, pois ouvia passos atravessando o corredor do outro lado da porta.

— Boa noite, filha. – disse a voz embargada do pai.

Ingrid ergueu a cabeça num susto e olhou pedindo auxílio para Nate, que indicou a porta com a cabeça.

— Boa noite, papai. – respondeu ela. A voz saiu chorosa, mas o pai não devia tê-la ouvido. Os passos foram se afastando.

—Vamos fazer uma pausa Ingrid. Vá lavar o rosto, respirar fundo. Eu espero.

4

Keith teria tropeçado no corpo do indigente ao entrar no beco, se não tivesse uma visão excepcional. Collin, mancando logo a seu lado, não teve a mesma astúcia e parou subitamente ao se sentir pisar sobre a mão do homem. O peso de toda sua massa corporal quebrou dois dedos do inconsciente sem-teto. Keith o olhou de lado, em reprovação, mas logo voltou os olhos para dentro do beco, ziguezagueando sua atenção pelo local. Olhou rapidamente sobre o entulho, a caixa de papelão e tudo o mais que o mendigo houvera anunciado como seu. O beco era escuro e a luz do poste mais próximo vinha da rua, detrás dos dois. Suas sombras se projetavam compridas pelo local, a de Collin ainda mais imponente.

— E aí? – perguntou o grandalhão, com as mãos nos bolsos do pesado casaco, cutucando o companheiro de buscas com o cotovelo. Collin ainda tinha os cabelos presos no rabo de cavalo, molhados, pesados sobre o rosto.

Keith se sentiu incomodado, mas ignorou a pressa do companheiro. Seu olfato não lhe dizia nada ali.

Os dois haviam seguido o rastro do odor de Nate desde o quarteirão da delegacia até essa rua, cada vez mais fraco pela distância e pela forte chuva. O perfume natural de uma área urbana também atrapalhava a busca, mesmo sendo uma pequena cidade como Roule County.

— Perdemos o rastro aqui.

— É, imaginei... – bufou Collin, apoiando as costas na saída do beco. – Então, o que você vê?

Keith fungou. Seu olhar de águia percorreu o lugar, tomando conhecimento de todos os marcos e objetos ali, ordenando os pensamentos numa velocidade assombrosa. Alguns poucos gênios ao redor do mundo teriam uma capacidade de raciocínio tão aguçada. A resposta veio quase imediatamente após a pergunta:

— Nate veio até aqui em quatro patas, ficou sobre duas pernas, brigou com esse homem caído – Keith indicou o mendigo com a cabeça. – e foi um pouco ferido, nada de mais. Depois o desacordou com um golpe na cabeça. Pegou algumas roupas dele. Fugiu.

Collin estalou a língua.

Algo me diz que ele não pretende descansar esta noite. E algo me diz que ele já sabe que estamos aqui. – disse, com um meio sorriso.

Ele usava muito esse termo, “algo”, para se referir a sua intuição. Bom, o que seria uma intuição para qualquer outro, para ele era como um sexto sentido. Ele próprio não sabia muito bem como controlar, nem como funcionava, mas de alguma forma seus palpites a respeito de coisas eram sempre certos.

Keith virou-se imediatamente na direção do grandalhão, tão rápido que seu rosto respigou as gotículas de chuva.

— Ele sabe? – perguntou, num tom elevado, não-natural seu. Keith não era do tipo a perder o controle, nem do tipo a fazer perguntas.

— Sabe. Por isso deu um jeito de fugir rapidinho da delegacia.

— E porque você não contou aos outros? – prosseguiu perguntando.

Collin olhou-o um pouco espantado, como se fosse óbvio.

— E como você acha que Aaron iria reagir? Não temos tanta verba assim, e consertar um quatro de hotel inteiro deve sair uma baba. É bom esperarmos para falar com Comp sem que ele possa ouvir.

Keith balançou a cabeça, desta vez desdenhando o companheiro em resposta.

— Pelo jeito você não pensou em como Aaron vai reagir quando descobrir que escondemos isto dele. Você sabe que tudo que ele tem na cabeça ultimamente é rasgar o pescoço de Nate.

Collin torceu o nariz, pois não tinha pensado nisso.

— Deixe pra lá. Diga pra onde você acha que Nate vai. – prosseguiu Keith.

—Não sei, sobre isso não senti nenhum algo. – Collin se divertia chamando sua intuição como se fosse uma coisa concreta e sempre presente. – Mas acho que devemos nos recolher esta noite.

— Explique. – pediu Keith, discordando.

— Se o encontrarmos, o que você pretende fazer? Atacar? Olhe pro céu cara, é a Meia Lua. A lua dele.

Keith não precisou olhar para o céu para saber a fase da lua, e mesmo que olhasse as nuvens da tempestade o impediriam. Ele sabia exatamente como a lua estava, sem precisar olhar para ela. Ele a sentia, todos eles a sentiam.

— Então vamos voltar. Precisamos encontrar um lugar seguro para dizer ao Aaron.

5

Nate abriu novamente a janela de Ingrid, expondo-se seminu para o frio da noite lá fora. Ingrid tinha ido pensar um pouco sozinha, levar a louça que haviam sujado de volta para o cozinha. Todos os parentes dela já haviam ido dormir, inclusive o pai. As sobrancelhas de Nate estavam quase unidas sob sua testa fincada. Ele debruçou-se no peitoril tentando sentir algum cheiro alarmante, mas não havia com o que se preocupar, pelo menos nos quarteirões circundantes, pelo menos por hora.

Estava tentando planejar seu próximo passo. Tinha tudo planejado quando chegou na cidade três semanas atrás. Encontrou Adam, talvez o único rastro de sangue lupino num raio de 500 Km e quando estava prestes a se aproximar dele, tudo acontecera tão rápido...

A porta do quarto abriu e fechou rapidamente, Ingrid entrando silenciosamente no cômodo iluminada por um simples abajur. Nate não se virou. Estava ponderando seu próximo passo e como ele afetaria a Prima. Novamente, resolveu dar o passo e arcar com as conseqüências, fossem quais fossem.

— Posso continuar sendo sincero, Ingrid? – perguntou, vendo um velho sedan prata passando pela rua, com crianças brincando no banco de trás.

A resposta da moça demorou, mas por fim ela assentiu, sem dizer nada, sentando-se na cama.

Nate prosseguiu, tomando o silêncio dela como permissão:

— É aqui que fica difícil. Acabou a nossa brincadeirinha de sonho. Se ficou mais fácil pra você entender, ótimo. Se você ainda vai seguir sua racionalidade, azar o seu, porque continua sendo tudo verda...

— Eu acredito. Eu sei que é tudo verdade. – Disse Ingrid, com palavras cuidadosamente escolhidas. Agora que ela mesma dissera, percebeu com um choque já não poderia mais voltar atrás. Todo aquele mundo louco de possibilidades cinematográficas e monstros – aos quais ela era aparentada – era verdade.

Nate se virou, um tanto aliviado, mas preocupado demais para demonstrar. Apoiou os cotovelos na janela.

— Agora eu vou dizer tudo o que está acontecendo, e porque esses outros lobisomens querem me matar.

Ela respirou fundo, mas tudo parecia diferente para ela agora, todo o rumo da conversa. Ela acreditava de verdade agora, e não tinha mais tanto medo. Confiava em Nate e sabia que ele a protegeria. E então Natanael começou a falar.

6

Éramos quatro. Eu, Aaron, Keith e Collin. Aaron era o mais novo, o omega da alcatéia. É um lobo muito irresponsável, mas não é culpa dele. Somos parte animal, parte homem e parece que é o lobo que fala mais alto dentro dele. Ele é baixinho e tem muito poucos músculos, mas quando a fúria corria no sangue, era mais forte que todos. Keith... Bem, Keith era o mais esquisito de todos nós, é um pouco frio demais para ser humano e passional de menos para ser lobisomem, mas tem sentidos que pairam o sobrenatural... Ele vê mais distante, ouve mais longe, e a mente parece que nunca deixa de trabalhar, ele está sempre pensando a mil. Collin era como o nosso relações-públicas, o nosso porta-voz. Ele é grandalhão e desajeitado, mas é muito bom com as pessoas e sente bem lidando com elas, porque sempre sabe o que dizer. E ele gosta especialmente das mulheres, é um namorador. E além dos três, havia eu.

Eu era o alfa, o líder e nós quatro funcionávamos.

O Alfa de uma alcatéia tem algumas vantagens sobre o resto dos lobos, é como com os lobos de verdade. Nós temos direito de comer primeiro e os outros têm de esperar até terminar; ficar com o melhor lugar para dormir, cortejar a fêmea primeiro, além de tomarmos qualquer decisão necessária. E quando somos desobedecidos, é uma situação tensa e perigosa. O desafiante e o Alfa brigam, disputam. Quem vencer é o líder.

Eu fui Alfa da minha alcatéia durante todo o tempo, desde o começo. Nunca fui desafiado, nenhum deles via qualquer problema na minha liderança, estavam contentes com as coisas do jeito como estavam. Keith era nosso trunfo, sempre planejava algo, sempre percebia aquele detalhe que todos deixavam escapar. Aaron era nosso batedor, indo sempre na frente, contando o que tinha visto e limpando o caminho do que quer que fosse atrapalhar. E Collin era nosso diplomata, nossa voz com qualquer um que nos incomodasse, ou que nos interessasse. Eu era a espinha dorsal da alcatéia, o palavra final, a sensatez quando o sangue de todos estava fervendo. Não é fácil, nem seguro, controlar o ânimo de lobisomens, principalmente quando é Lua Cheia, quando ficamos mais irritadiços.

Até que numa das nossas viagens, encontramos um outro lobisomem. Solitário, o que é esquisito pra nossa gente. Sempre vivemos em bando, é como uma família. Eu decidi deixá-lo vir conosco, e decidi se ele se tornaria parte da alcatéia ou não. Por um tempo foi uma maravilha, é perfeito caçar numa alcatéia com cinco de nós. Não sabemos como explicar, mas cinco é o número perfeito para um grupo nosso, nem mais nem menos. E fomos assim, uma alcatéia perfeita por uns 6 meses, durante os quais ele foi só um tipo de convidado, um cara que acolhemos. Mas eu dei boas vindas a esse novo lobisomem que tinha trazido tanta melhora pra nós, tanta prosperidade e o aceitei como parte da alcatéia. E à Meia Lua, época que sempre usávamos pra coisas e eventos importantes, nós o iniciamos de braços abertos e sorrisos no rosto.

Seu nome era Giovanni Compacci.

E durante mais uns três meses continuamos sendo uma alcatéia, cinco lobos em plena forma e sincronia, ótimos. Porém já não tão perfeita. Algo estava diferente em Comp, como o chamávamos. Ele tinha se tornado um tanto rebelde, questionador, lento nas caçadas, desdenhoso com todos os outros. Começou a nos irritar e prejudicar as caças, nós nos ferimos algumas vezes por falhas dele. Até nos metemos em um conflito que eu não quero nem pretendo me lembrar, e por pouco saímos com nossas caudas inteiras. Ele tinha se tornado um fardo.

Eu o tentei pôr no lugar, como sempre, à Meia Lua, numa conversa particular.

Mas ele me questionou e me afrontou e de repente já não era mais o Comp que eu tinha aceito de bom grado, o bom lobisomem que se encaixara perfeitamente entre nós. Era uma raposa traiçoeira de língua afiada, um trapaceiro enganador. Ali, sozinho com ele debaixo da minha Lua, ficou claro que eu estava conhecendo o verdadeiro Giovanni pela primeira vez. Logo nossos egos inflamados se chocaram e estávamos brigando, e feio. Uma briga de lobisomem sempre é feia, é cruel, sanguinolenta e brutal. Mas ele passou dos limites.

Infelizmente, só nós dois estávamos presentes e meus companheiros não viram o que ele fez.

...

Prata.

Não sei como te fazer entender a curto prazo a abominação que é um lobisomem usar prata contra outro... É senso comum que é nosso ponto fraco, mas nem por isso saímos usando uns contra os outros, mesmo que queiramos nos matar. Acho que seria como uma pessoa querer matar a outra com ácido sulfúrico, entende? A dor que nos causa é... Acho que não tem uma palavra na língua humana pra isso. É iktah. Na nossa língua anciã era uma palavra usada pra descrever os espíritos e forças mais escuros e ruins que se conhecia. Hoje nós costumamos descrever a dor da prata assim.

E óbviamente, com a prata, ele me venceu. Na verdade ele quase me matou. Dê uma olhada na cicatriz, é bem aki na lateral da coxa... Do quadril até quase o joelho, um corte aberto gorgolejando sangue enquanto eu praticamente rasgava minhas cordas vocais do berro, do uivo de dor. Mas Giovanni não parou. Ele largou a prata de lado e me surrou, como eu nunca havia sido surrado. Eu me lembro de muito pouco. Estava entorpecido da dor. Ele me deixou inerte no chão, pra morrer, quando eu o vi cravando a faca de prata na própria barriga e se afastar enquanto sangrava perigosamente, chamando pelos outros. Desmaiei.

Quando acordei, a dor ainda estava lá, iktah, e eu acordei berrando, na casa de um estranho. Ele disse que me achou na floresta, quase morto e me pegou.

Ele cuidou de mim e me ajudou a me recuperar, tornei-me seu amigo. É, além da dor que a prata causa, não regeneramos muito bem os ferimentos feitos com ela... Demorei dois meses pra conseguir andar de novo. E Comp começou a me procurar por telefone, pedindo o Anel do Alfa. Este aqui, vê? É o símbolo da minha liderança da alcatéia, mas agora não é símbolo de nada. Ele é um tanto abençoado. Me ajuda a perceber só com um olhar quem tem sangue de lobisomem forte nas veias como Adam, sangue fraco como você, e sangue de humano como toda sua família. E Comp queria esse Anel, dizia que agora ele era o Alfa da alcatéia e que era dele por direito. Eu ouvia os outros do outro lado da linha furiosos comigo por ter usado prata contra Comp no desafio, por ter sido tão covarde e baixo. Comp tem uma língua de cobra. Não sei exatamente a versão que ele contou a Keith, Collin e Aaron, mas sei que os convenceu de que ele me desafiou pela liderança e me venceu. Então com raiva, o ataquei com prata. Ele revidou e eu fugi, envergonhado e me recusando a ficar na Alcatéia.

E eu recusei a entregar-lhe o Anel. Tentei entrar em contato com os outros três para lher explicar exatamente o que aconteceu, mas eles estavam enfurecidos. Não acreditavam no que eu tinha feito e logo já não me atendiam mais.

E as coisas pioraram. Eles me deram Caça.

Isso é quando uma alcatéia decide uma meta, um alvo. Ela passa a deixar de lado tudo que um lobisomem têm de fazer e se torna um time de caçadores, com uma presa a ser abatida, em tempo integral. Eu era essa presa.

O amigo que salvou minha vida me ajudou a fugir por um tempo, até minha perna estar 100% recuperada, e eu fiquei devendo muito a ele. Ainda devo...

Eu tinha uma alcatéia perfeita, com amigos aos quais confiava minha vida. E um cretino a tirou de mim, me deixou a beira da morte e me fez passar por um assassino portador de prata! Ele e meus antigos amigos estão atrás de mim agora. E estão aqui em Roule County.

Eu fugi por 6 meses Ingrid, como uma raposa assustada, mas não quero mais fugir!

Vou fincar as patas no chão e rosnar de volta, lutar! É minha própria alcatéia de que estou falando, e eu ainda os amo, mas não posso deixá-los continuar me caçando. Eu tenho insitintos, tenho honra e quero ser livre.

Eu vou lutar contra a alcatéia e já achei quem vai me ajudar.

7

Os olhos de Nate se tornaram avermelhados conforme ele adentrava na história. Começou com um tom casual, mas logo estava levantando o tom de voz, gesticulando. Ele rosnava sem perceber entre uma sentença e outra, mas Ingrid manteve-se em silêncio. Percebeu que era muito importante para ele. Percebeu que era a primeira vez 6 meses de solidão e de fuga que ele deixava tudo fluir, desabafava. Quando ele mencionou a prata, ela pode sentir na voz a impressão que a dor deixara nele.

Agora, um silêncio diferente se instalara entre os dois. Não era incômodo, era respeitoso da parte de Ingrid, sincero e solidário. Da parte de Nate, era apenas o que parecia ser tristeza, ou profunda angústia.

— Eu ajudo... – ela se levantou e caminhou até ele com cuidado, sem saber se podia violar seu espaço, mas ele não reagiu.

Ele levantou o rosto, num meio sorriso, ainda parecendo afetado pelas lembranças e apoiou as pesadas mãos sobre os ombros da moça, fazendo-a sentir o peso de seus braços.

—Obrigado de verdade. – disse ele e seu olhar agora vulnerável juntou-se ao de Ingrid. Ele estremeceu e torceu para que ele não tivesse sentido.

Ela inclinou o corpo um pouco para frente, sua mente cada vez mais livre de pensamentos, deixando os lábios relaxados.

Ingrid tinha certeza de que Nate iria beijá-la naquele momento, quando uma buzina fez-se ouvir do lado de fora.

Ela se sobressaltou e ficou na ponta dos pés para ver por cima dos ombros de Nate pela janela. Ele permaneceu parado por um tempo, e virou-se, abraçando-a pelos ombros.

— Sua carona chegou.

quarta-feira, 17 de março de 2010

It's Alive!!

Queridas e escassas leitoras (digo no feminino porque sei que só um ou dois cuecas, no máximo, lêem esse pedaço de internet que eu chamo de "meu"). Eu não morri, nem Paragon.

Adam vai muito bem obrigado, e pras fãs dos outros mais malvados, eles também estão ótimos.
O quarto JÁ ESTÁ escrito. Só Deus sabe porque ainda não postei.

Rajannah me cobrou o conto nesse último fim de semana e eu percebei que tava na hora de postar mesmo.

Só que estou no trabalho e por enquanto não posso postar, mas assim que chegar em casa vou despejar aquelas páginas aqui.

Mil beijos.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Do Quarto Capítulo


Queridos e escassos leitores, estou de volta depois de uns bons quatro meses de ralção por causa do vestibular... Agora que a poeira dos estudos está abaixando eu posso voltar a escrever, coisa que já fiz.

Aliás, boas notícias, o Capítulo Quatro foi terminado ontem de tarde! Só me resta dar uma repassada pra procurar qualquer errinho que possa ter saído e eu já posto para vocês!

Beijos e abraços.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Complementando o elenco

Bom galera, acabou que eu consegui terminar o Terceiro Capítulo mais rápido do que eu esperava! Garanto que o Quarto vai sair mais rápido porque tenho uma idéia bem mehor do que vai acontecer e de quais pernagens vão surgir em quais cenas.
Enquanto isso a pedido da Lara, Karen e Camila, estou complementando o "Elenco" de Paragon com as adições do capítulo + os veículos dos personagens.

Personagens:
Adam Savage - Thomas Dekker
Peter Belmont - Steven Strait
Lílian Belmont - Ellen Page *
Bárbara - Megan Fox
Natanael Hensen - Matt Dallas
Keith Darell - Channing Tatum
Collin Sellers - Taylor Kirsch
Aaron Scuddler - Gaspard Ulliel
Giovanni Compacci - Ben Foster

*Ellen Page não tem cabelo loiro como a Lílian, e pelo que parece não fez nenhuma personagem que precisasse tê-lo tingido, então na falta do loiro vai o castanho. Acho que não vou encontrar ninguém mais adequada à Lílian do que ela.

Veículos:
Moto de Nate: Yamaha R1
Moto de Aaron: Ducati 749
Carro de Peter: Camaro SS 69
Carro de Collin: Toyota SUV

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Encontros - Terceiro Capítulo

1
Marches County, o distrito mais próximo de Roule County, era um tanto diferente de sua vizinha. Suas ruas, ao contrário das de Roule, tinha mais casas e menos edifícios, mais praças, mais árvores, mais espaços abertos. Era no geral, um distrito mais rural e menos sofisticado. Algumas pessoas tinham animais no quintal de casa e os criavam como se tivessem uma fazenda. Engordavam-nos, tratavam-nos e na época certa, serviam-se deles.
A força policial também era mais humilde, bem reduzida se comparada à Roule County, com cerca da metade dos homens. Pouquíssimas infrações aconteciam na cidade, onde todos se conheciam e sabiam das vidas alheias. O hotel local, presidido pela idosa, mas jovial Sra. Baker, nunca tinha muito movimento. Sua renda vinha das poucas pessoas que viajavam pelo estado e faziam uma parada na pequena e aconchegante cidade.
Sra. Baker era viúva há mais de 10 anos. Sua aparência decaiu depressa depois da perda do marido, apesar da senhora nunca ter se entregado à tristeza, ao ócio e à solidão. Ela se dispunha todas as manhãs a caminhar pelo quarteirão e se recusava a deixar todo o trabalho de faxina para a única empregada do Hotel, Srta. Molles. Juntas, as duas sobreviviam com o dinheiro do Hotel, onde ambas moravam.
Depois de anos a fio com a clientela escassa, o Hotel da Sra. Baker viu uma virada em sua monótona rotina. Alguns rapazes, vindos de Chicago em férias, hospedaram-se por uma semana inteira. Eles afirmaram ter gostado da cidade e do Hotel e de precisarem ficar por um tempo até que outro amigo chegasse. O grupo planejava acampar junto. Eram 4 no total, todos aparentemente na mesma faixa etária, exceto um que era obviamente mais velho.
No amanhecer do sétimo dia da estadia dos rapazes, Sra. Baker levantou-se para sua caminhada pela vizinhança. Seus 67 anos já lhe tiravam um pouco da prática agilidade que tinha quando era jovem, mas não a disposição. Ao sair de seu quarto, no primeiro andar, avistou um dos rapazes, sozinho, descendo as escadas. Se a memória não lhe falhava, seu nome era Keith Darell.
— Bom dia, Sr. Darell. – cumprimentou Sra. Baker.
Ele parou por uns instantes e virou-se por completo, com um meio sorriso no rosto. Keith tinha uma aparência confiante, cheia de si. As sobrancelhas eram quase sempre arqueadas sobre os olhos, como se estivesse sempre analisando tudo o que vê. Seu rosto tinha traços retos, incluindo o queixo, o nariz, a testa. Seu cabelo preto era cortado curto, como se fosse militar. Seus olhos verdes, inquietos nas órbitas, percorriam todo o corredor, como se ele observasse uma pequena bola flutuante que passeasse por todo o lugar. Era inquietante conversar com alguém que não mantinha o olhar fixo por mais de alguns segundos. Usava uma camisa de botões aberta por cima de uma camisa de flanela e calças jeans pretas, compridas, quase escondendo seus tênis.
— Acordada tão cedo, Sra. Baker. Pensei que fosse descansar hoje. Estamos dando muito trabalho.
Ele realmente falava com confiança. Ele não fazia perguntas, como: “Estamos dando muito trabalho?” Ele afirmava.
— Ah, de forma alguma, jovem, sempre gosto de passear ao nascer do sol. – disse, seguindo pelo corredor ao lado dele.
Ele ficou em silêncio caminhando ao lado da senhora até a entrada do hotel. Ainda estava um tanto escuro lá fora, mas o céu já começava a mudar do azul escuro para o lilás e em breve já estaria completamente azul. Ou não. Algumas nuvens começavam a se formar no horizonte, na direção de Roule County.
— Vem uma tempestade aí... Ouvi dizer que choveu bastante lá em cima durante essa semana... – disse a velha. Não parecia que ela estava dirigindo a palavra a ninguém. Mantinha os olhos afastados dele e nem sequer gesticulava em sua direção. – É sempre assim... Chove lá, chove aqui.
—Eu sei, vi a previsão do tempo. – disse Keith, mal esperando que ela terminasse. Pareceu que não estava nem um pouco interessado em ouvi-la. E então continuou. – Ninguém se dá ao trabalho de checar então eu faço pelo grupo. Não se acampa com chuva.
A senhora concordou com a cabeça, um tanto encabulada. Não se sentia bem conversando com ele. Na cidade pequena em que morava, todos a tratavam com respeito e mesmo que não quisessem, fingiam escutá-la. Esse jovem parecia não se importar.
— A senhora quer companhia? – perguntou Keith, abrindo a porta para que ela passasse.
— Oh, que gentileza, jovem! – suspirou, surpresa com o convite. – Não há necessidade, gosto de caminhar sozinha pra ordenar os pensamentos.
— A senhora tem bastante energia para alguém da sua idade. – disse ele, caminhando ao lado dela em direção à esquina da rua. Sra. Baker tomou como um elogio, mas para Keith não passou da constatação de um simples fato.
—Obrigado, Sr. Darell, espero que você também seja tão saudável quanto eu quando chegar à idade.
Keith riu baixo, num tom grave, fechando os olhos de cabeça baixa. Passou a mão pelos curtos cabelos sem desarrumá-los.
— Duvido que eu vá chegar à sua idade, Sra. Baker, mas agradeço os votos.
— Oh, não diga isso! Você vai viver muito mais que eu, tenho certeza! – ela sentiu-se triste pela afirmação do rapaz, que aparentava cerca de 20 anos. A senhora associou o cabelo em estilo militar ao exército ou afins e achou que ele talvez pertencesse às Forças Armadas. Era triste como morriam jovens os soldados do país. Ela torceu em silêncio para que Keith não fosse apenas mais um.
Os dois ficaram em silêncio até a esquina da rua, passando por diversas árvores plantadas à margem da calçada, dos mais variados tipos. Caminharam devagar, ritmadamente. A senhora percebeu que Keith estava diminuindo propositalmente seus passos para equiparar-se a ela. Esquisito, ela pensou. Seu comportamento quando fala é completamente diferente de seu comportamento quando age. Ele falava a ela como se falasse com um amigo qualquer, sem muito respeito pela idade. E em contraste, abria-lhe a porta e oferecia-lhe companhia.
O rapaz atravessou a rua depois de ouvir Sra. Baker se despedir, sem responder, e dirigiu-se a uma lanchonete grande do outro lado da esquina. Reconheceu uma Toyota no estacionamento como sendo de um amigo e entrou pela porta dupla de vidro.
Havia cinco garçonetes pelo local, atendendo várias mesas. Três delas, as mais jovens, iam de mesa em mesa anotando pedidos, enquanto as duas restantes, mais velhas, já na casa dos 40, trabalhavam no balcão. Notava-se também um movimento considerável. Todos os sábados havia uma promoção de café-da-manhã e todos os dispostos a chegar lá antes das 08:30 pagam quase metade do preço usual. A maioria dos clientes ali eram senhores aposentados que se davam ao trabalho de ir até o estabelecimento para aproveitar a oportunidade de flertar com as jovens atendentes e, às vezes, dar beliscões em suas bundas e chamá-las de “docinho”.
Assim que entrou, Keith reconheceu o dono do carro, Collin Sellers. Era possível vê-lo até do outro lado da loja, pelos seus metro e noventa de altura. Desviando das garçonetes que vinham na direção oposta com pressa de anotar os pedidos, Keith caminhou até a mesa do amigo com as mãos nos bolsos das calças. Alguns clientes deram bom-dia, já reconhecendo o rosto do jovem visitante da cidade. Keith saía muito para caminhar pelos arredores e não sabia, mas estava sendo falado; afinal, ele e seus amigos eram praticamente os primeiros a passar mais de duas noites no Hotel local. Quanto aos “bom-dia”, ele não respondeu. Antes de se sentar, Collin ergueu o olhar por cima da xícara de café que tomava. Com um movimento rápido do braço, atirou-lhe algo no peito.
Keith agarrou antes que caísse no chão e sentou-se. Era o celular de Collin.
— Muito engraçado, Keith. – disse o grandalhão. Collin tinha uma aparência amigável e cavalheiresca que contrastava com seu tamanho. Tinha os ombros largos e o peito estufado, além de uma excelente postura, que o deixavam um pouco imponente demais. Tinha os olhos finos e castanhos como duas gotas de chocolate. O cabelo sedoso, da mesma cor dos olhos, era preso cuidadosamente num rabo de cavalo, com algumas mexas soltas na frente do rosto, talvez propositalmente. Tinha o nariz largo e uma voz penetrante, mas não grave. A camisa cor de creme era comprida, quase escondendo suas mãos, e apertada pelo corpo.
Keith virou o celular para si e leu o que dizia na tela. Era uma manchete de jornal reduzida a algumas linhas seguida de um número para mensagens de texto e o nome da operadora. O conhecido Spam.
Keith riu. Tinha assinado as notícias diárias por mensagem no celular do amigo. Os dois sempre discutiam sobre assuntos relativos à informação. Collin não via nem lia jornais, sequer a previsão do tempo, e era completamente alheio às propagandas da mídia; já Keith era rigoroso quanto à mesma, acompanhando o noticiário todas as noites e pagando fielmente a assinatura de um jornal. Achou que o amigo deveria pelo menos saber de algumas coisas, mesmo que com o conteúdo e a qualidade reduzida, com era no celular.
O grandão pegou o aparelho de volta e guardou do bolso da calça, com um meio sorriso de desdém. Empurrou o prato para o meio da mesa, oferecendo suas torradas ao amigo. Ele devia ter pedido café para dois, pois havia mais de seis pelo prato.
— Não, obrigado. – dispensou a comida enquanto, por baixo da mesa, tocava a ponta de seu tênis na canela de Collin. – Deve estar doendo...
Collin encolheu a perna ao sentir o simples toque de Keith, pois a dor lhe subiu até a cintura com a velocidade de um raio. Por baixo da calça azul que usava, toda a região de sua canela estava enfaixada em ataduras. O grandalhão não gostou da brincadeira e olhou para o amigo com reprovação.
— É, ta sim. A umidade do ar aumentando... Dói bastante. – respondeu. Apoiou os cotovelos na mesa e se aproximou de Keith. Keith fez o mesmo.
Collin indicou sutilmente com a cabeça para que olhasse por cima de seu ombro. Atrás dele, no fundo da loja, duas atendentes conversavam em voz baixa, olhando esporadicamente para os dois, com sorrisos nos rostos. A mais baixa, de frente para os dois, era loira, com alguns fios pretos pelo cabelo. Tinha o rosto redondo e uma aparência empolgada. Era baixa e um pouco acima do peso. Tinha os olhos amendoados e bonitos, como duas piscinas de água verde. A outra que se encontrava de costas era um pouco mais alta e mais magra, tinha os cabelos pretos, tingidos de vermelho na ponta e sua pele era muito branca. Seu corpo era mais bem definido que o da amiga. As duas usavam o cabelo preso com palitos, no estilo de mulheres de negócios. Keith não classificaria nenhuma das duas como bonita.
— O que tem? – perguntou Keith, os olhos inquietos agora passeando por todas as pessoas da loja.
— Umas delas quer saber se eu tenho namorada. – afirmou Collin, comendo um pedaço duma torrada. Metade dela desapareceu com uma mordida.
— Você não tem. – O olhar vibrante de Keith parou sobre as moças e as analisou por um tempo. – Não entendi o que você quis dizer.
Collin revirou os olhos. Keith era uma das pessoas mais atentas que ele conhecia, mas era incapaz de compreender as nuances do comportamento social.
— Consegue descobrir qual delas? – perguntou o grandalhão. Não queria ter de explicar ao amigo, ele não prestaria atenção.
Keith deixou de olhá-las, apenas, e começou a prestar atenção. Apurou seus ouvidos, fechando os olhos e inclinando a cabeça na direção da moças. Ele podia ouvir suas vozes no meio de todos os outros sons, mas não conseguia discernir as palavras. Os carros passando pela rua, a sineta do balcão sendo soada constantemente, as outras atendentes gritando pedidos para a balconista, que gritava para o cozinheiro. Algumas palavras chegavam aos seus ouvidos, mas não faziam sentido assim solitárias.
Abriu os olhos, mudando de tática. Respirou fundo e endireitou-se no banco acolchoado, concentrando-se na visão. Aos poucos foi deslocando sua atenção dos sons para longe, deixando-os cada vez mais abafados. Ignorando-os aos poucos, depois de alguns segundos ele ainda os ouvia, mas não mais os escutava. Estava, como ele próprio dizia, desligado.
Ele podia ver os lábios de uma se movendo, conforme tagarelava rapidamente. Sem dificuldade, ele os leu:
— ... sei, não fui eu que o atendi.Porque não... Annah?
Perdera o fragmento. “Porque não, Annah?” Será que seu nome era Annah?
Keith estalou a língua, esforçando-se. A leitura labial era mais difícil em mulheres do que em homens... Quanto mais expressões se fazem por cima dos lábios, mais difícil se torna lê-los. Além de que muitas cobrem a boca com a mão ao rir ou ao dizer algo empolgante, uma fofoca, por exemplo. Outras simplesmente ajeitam demais o cabelo, passando o braço pela frente do rosto, ou simplesmente jogando-o de um lado para o outro.
A outra começou a responder, mas Keith não conseguiu pegar. Ela estava de costas, apenas uma pequena parte de sua bochecha era visível. Apressado, ele viu a vidraça por trás das duas e fixou o olhar lá. Pelo tênue e translúcido reflexo no vidro, ele viu o reflexo da moça de cabelos pretos. Nem sequer se deu ao trabalho de notar detalhes, focando seus lábios imediatamente.
— ... com ela... Melhor... pra lá. Ele deve ser compromissado. ... bonito como ele...
Agora mais do que nunca, era difícil fazer a leitura. O vidro era um péssimo objeto refletor, e além disso, pessoas e carros que passavam do outro lado confundiam demais a percepção.
— E aí? – perguntou Collin, mas suas palavras nem sequer chegaram à consciência de Keith. Ele estava muito concentrado.
Percorrendo o olhar rapidamente, notando que as duas estavam prestes a encerrar o assunto, captou os nomes em seus dois crachás. A baixinha se chamava Amália e a mais alta, Erika. Pouco depois de ler os nomes, as duas se afastaram e voltaram a atender os fregueses espalhados pela loja.
Lentamente, Collin viu o foco voltando aos olhos do amigo, conforme ele relaxava na cadeira e seus ombros se descontraíam. Ele voltou a lhe encarar, pegando uma torrada do prato e comendo a pequenos mordiscos. A moça baixinha passou por eles, indo em direção à cozinha, enquanto a morena de cabelos tingidos atendia a clientela do outro lado da loja.
Collin ergueu as sobrancelhas, palmas das mãos pra cima, esperando um esclarecimento.
— A mais baixa se chama Amália e a mais alta se chama Erika. Elas acham que você deve compromissado, porque é bonito. E tem essa tal Annah, mas não descobri quem é. Parece que quem está interessada é ela. – de braços cruzados, ele apontou por cima do ombro de Collin para Erika, que atendia a duas senhoras com um sorriso simpático no rosto. – Ela deve ter uns...
— 17 anos. – completou Collin, fungando e relaxando na cadeira, apoiando as costas do encosto. Ele parecia ter certeza absoluta da constatação.
Aproximando-se lentamente e com cautela, uma garçonete de cabelos castanhos parou ao lado da mesa. Tinha cabelos ondulados e compridos, um olhar firme e corajoso, mas uma postura de insegurança. Os dois repararam imediatamente o nome em seu crachá: Annah.
— Oi... – ela fez uma pausa, olhando de Collin para Keith. Parecia admirá-los por uns instantes, por qualquer motivo que fosse. Não fosse a beleza, ambos eram figuram muito imponentes e se sobressaíam no ambiente. – O seu amigo vai querer alguma coisa?
Os dois trocaram olhares. Collin censurou-o com o olhar, pois sabia que ele poderia dar uma resposta um pouco desagradável. Mas nenhuma resposta desagradável passou pela cabeça de Keith; pelo contrário, algo ousado lhe ocorreu. Ele estava olhando-a fixamente nos olhos. Gostara deles, de sua cor cobre, como duas moedas. A região logo abaixo dos olhos e as bochechas da moça ficaram avermelhadas, mas ela manteve o olhar firme, esperando a resposta, muito profissionalmente.
—Keith? Vai tomar café da manhã? – perguntou Collin. O contato visual que os dois faziam estava um tanto longo demais para ser natural.
— Na verdade, já tomei. – disse, apontando para uma metade de torrada que tinha deixado a sua frente. – Mas gostaria de saber o que você recomendaria, Annah.
— As panquecas estão boas, pelo menos hoje. – disse. Keith aprovou a entonação. Não sabia exatamente o que esperar, mas achou que fosse gaguejar ou algo do tipo, mas falou fluidamente, sem desviar o olhar.
Collin olhava tudo com curiosidade. Nunca tinha visto o amigo demonstrar interesse numa mulher.
— Então vou experimentar. – respondeu. Desviou o olhar rapidamente para o amigo gigante. – E vamos querer duas xícaras de café.
— Tudo bem, já volto. – disse Annah, sorrindo e se afastando, o bloco de anotações abraçado contra o peito.
Assim que ela se afastou, Collin despejou.
— O que foi isso?
Keith o encarou, uma sobrancelha erguida, os olhos voltando a fazer seus percursos pelo local.
— Não entendi.
— Desde quando você flerta? – perguntou o grandalhão, sem esconder um sorriso.
Keith deixou uma risadinha escapar também. Os dois riam nesse momento, e não perceberam que vários olhares pela loja estavam fixados neles. As duas figuras imponentes, mas risonhas, que chamavam atenção.
— Ele me ligou ontem de noite. – disse Collin, logo no fim da risada. Os dois ficaram sérios lentamente, agora que um assunto aparentemente sério chegava à pauta. –Você tem que ficar.
Os olhares dos dois se cruzaram, trocando algumas informações. As sobrancelhas imóveis de Collin, somadas a seu olhar baixo, porém firme, diziam que era um assunto importante. Mas sua respiração casual e seus gestos informais diziam a Keith que ali não era o lugar certo para se falar.
Essa comunicação peculiar que os dois estabeleceram durou apenas alguns segundos. Caso fossem duas pessoas, normais, não teriam conseguido se compreender tão facilmente, com tanta naturalidade.
Annah voltou, trazendo um prato de panquecas e duas xícaras de café, com um sorriso ligeiramente esticado no rosto. Keith notou que ela tinha mexido no cabelo, mas só um pouco. O suficiente para deixá-lo um pouco mais solto, com algumas mechas livres que lhe davam uma aparência mais sensual. Collin afastou o olhar dos dois. Poderia acabar rindo de novo se os visse se encarando com tanta libido nas palavras.
— Espero que goste das panquecas. – disse a moça, pondo o prato bem a frente do rapaz.
—Obrigado, Annah.
A moça deu meia volta para se retirar, mas Keith se esticou e tocou levemente seu braço. Ela pareceu prender a respiração com o toque, e virou-se para encará-lo. Seu rosto estava ligeiramente avermelhado.
— Sim? – disse, soltando o ar. A palavra saiu como um suspiro. Collin cobria o sorriso largo com a mão, olhando pelo vidro para fora da loja.
Keith fez um sinal para ela se aproximar, e puxou ligeiramente seu braço até que o ouvido da moça ficasse na altura de seus lábios. Ele sussurrou algo, que Collin ouviu, obviamente.
O rosto branco de Annah rapidamente se enrubesceu ao mesmo tempo em que ela sorria e ao mesmo tempo em que tentava disfarçar esse mesmo sorriso.
— Eu... Eu já volto, ok? – disse, afastando-se lentamente, já sem tentar esconder o sorriso. Ela olhava para o balcão, onde estavam as duas senhoras. Collin notou que elas pareciam aparentadas, as três; tinham formato de rosto igual e bocas parecidas.
Annah se afastou, encabulada, para atender rapidamente outros senhores.
Collin e Keith se encararam em silêncio por poucos segundos, o grandalhão sorrindo e o outro quieto.
— Tudo bem... Tenho que ir, mas você pode ficar e se divertir. – disse Collin, apoiando-se na mesa com as duas mãos e levantando-se. Pegou uma muleta de aço escovado que estava deitada ao seu lado na cadeira e apoiou-se com a mão esquerda. Um pouco desajeitado por causa de seu tamanho, saiu espremido do banco e caminhou manco até a saída da lanchonete.

2
As costas e as pernas de Keith já doíam e formigavam bastante às 20h. Passara o dia inteiro sentado no mesmo banco da lanchonete. Café da manhã, almoço e uns petiscos mais à tarde. Chegava à hora da última refeição do dia e seu estômago reclamava de fome mais alto que os músculos de dor. O livro que começou a ler ali mesmo, neste mesmo dia, estava quase chegando ao fim de suas duzentas e tantas páginas, mas ele já não sentia mais vontade de ler; talvez porque já o tivesse lido diversas vezes. O Apanhador no Campo de Centeio era um de seus favoritos. Observando a loja e o pouco movimento, Keith fechou o livro com força e deixou-o sobre a mesa, ao lado de sua xícara de café. A sétima do dia.
Ele tomou um gole e estava frio. Como ele gostava. Muitos diziam que ele era louco por gostar de café frio, mas ele simplesmente não ligava para isso. De fato, ligava para quase nada que os outros diziam a seu respeito. Ninguém o conhecia suficientemente bem para poder fazer qualquer afirmação que ele devesse levar em conta. Com exceção de talvez 4 pessoas, ele se considerava um homem sem amigos. Muitos conhecidos e muitos contatos, mas pouquíssimos amigos.
As primeiras gotas de chuva caíram com estalos altos na vitrine da lanchonete, bem espaçadas a princípio, mas violentamente depois de um tempo. Nesse meio tempo Keith manteve-se sentado, sentindo o formigamento, com o olhar fixo no couro do assento a sua frente. Algumas garçonetes passavam por ali de vez em quando para perguntar se ele desejava mais alguma coisa, mas ele as dispensava dizendo que não. Ele olhava no relógio de pulso a cada 10 minutos, até que os ponteiros marcaram 20:30. Quanto tempo mais ele teria de esperar? A reunião estava marcada para uma hora atrás e seus companheiros não costumavam se atrasar. Será que alguma coisa poderia ter acontecido? Esse era o principal motivo pelo qual Keith detestava ficar para trás para vigiar o território. Ele nunca ficava 100% a par dos acontecimentos.
Seu celular vibrou levemente, apenas uma vez e com pressa ele o pegou do bolso. Na tela, estava uma mensagem de texto Collin, com apenas uma palavra: “Venha”.
Annah, detrás do balcão, olhou-o saindo da loja com uma expressão desapontada. Parecia que o rapaz tinha desistido de esperar seu expediente terminar para poderem conversar a sós. Ela teve vontade de alcançá-lo e pedir algum tipo de explicação, mas isso simplesmente não era típico dela.
Empurrando a porta de vidro da lanchonete, sendo observado por Annah detrás do balcão, Keith saiu para a tempestade.

3
Adam aceitou a carona de Peter sem muitos argumentos. Tudo acontecera tão rápido.
Só agora a raiva começava a afetá-lo, só agora que as peças pareciam se encaixar e fazer sentido em sua cabeça. O novato Nate tinha assassinado o dono da locadora na noite anterior. E é claro, o novato Nate tinha tentado algo contra Lílian. Adam não ficou nem um pouco emocionado pela morte do homem, mas o fato dele ter voltado suas mãos para a pequena e frágil Lílian o deixavam furioso. Quase furioso demais.
No Camaro de Pete, os dois iam em silêncio, lado a lado, olhares vidrados. Peter esfregava as mãos no couro do volante, porque estavam ficando encharcadas de suor; os braços estavam esticados e duros, e quando ele tinha de mudar a marcha, fazia com desajeito e afobação, e o carro antigo estalava de reprovação.
Adam estaria com os punhos fechados, com câimbra nos dedos, mas estava esfregando as mãos.
O nervosismo se quebrou quando Peter parou num sinal vermelho e pela primeira vez desde que saíra da escola com Adam minutos atrás, ele tirou as mãos do volante e bateu no próprio colo.
— Eu juro que mato aquele cara! – bradou, esmurrando a buzina duas vezes e agarrando os cabelos, jogando-os pra trás.
Adam respirou fundo, apesar de querer concordar.
— Ad, ele vai ver só, meu pai vai acabar com a raça dele. Você viu a cara do meu pai quando ele chegou e quando o algemou, não viu? Ah, ele vai ter sorte se sobrar algum pedaço daquela cara cínica na hora de depor...!
Adam segurou o ombro de Peter e olhou com firmeza.
— Peter, calma. – disse, apesar de saber que ele detestava ser pedido pra ter calma. – Seja racional, cara, seu pai não vai encostar um dedo nele, não seria capaz disso.
Mas Adam não tinha certeza disso, nem um pouco. Se Peter era superprotetor com a irmã, é porque aprendeu muito bem com o pai.
Ele riu com desdém, engatando a marcha novamente e acelerando pelo sinal verde.
— Você não faz idéia do que ta falando Adam, tenho certeza que isso não vai acabar muito bem pro lado dele, aliás, eu torço pra que não termine nada bem para o lado dele... – Ele freou novamente num outro sinal, vendo carros passarem acelerados na rua transversal, a mais movimentada da cidadezinha. – Só de imaginar o que ele teria feito, as coisas que passavam pela cabeça dele...!
— Pára! – pediu Adam. Seus punhos estavam fechados. – Pára, tá bom? Não adianta ficar “pensando”, no que ele teria feito, porque ele não fez, certo? E se tivesse feito, se tivesse mesmo feito...
Ele tentou manter a imaginação distante da razão para conseguir terminar de falar. Esse nervosismo que estava sentindo não era natural dele.
— ... Se tivesse mesmo feito algo, tenho certeza que estaríamos agora mesmo acabando com a raça dele.
— É isso, aí, pode apostar que sim! – concordou.
Os dois falavam com agressividade, o que era incomum. Nunca tinham se envolvido em nenhuma briga, e não tinham idéia do que estavam dizendo.
O sinal abriu novamente e Peter tentou sair com o carro, mas errou a marcha e o velho Camaro morreu, engasgado.
Os dois se entreolharam com expressões cansadas, ouvindo as buzinas do trânsito atrás.

Adam e Peter estavam cheios de adrenalina devido ao stress, e conseguiram empurrar o carro sem dificuldades, mas ele não pegou. Tentaram três vezes, sem resultado. Peter começou a pensar em pedir um novo carro para o pai pela primeira vez desde que aprendera a dirigir. Gostava do seu Camaro, do seu estilo velho e rebelde, mas se tivesse que trocar essas qualidades por um carro que funcione, ele o trocaria.
A adrenalina aos poucos foi se ausentando do sangue, os batimentos cardíacos ficando mais lentos. O esforço começou a pesar nos músculos agora que ia ficando mais frio conforme entravam pela tarde. Os dois odiariam que uma chuva os pegasse ali, desprevenidos, e concordaram em chamar um guincho, sabendo que o próprio Peter teria de arcar com as despesas. Nesse momento, foram surpreendidos por um homem na calçada, que ergueu o braço em cumprimento. Era Edmund Düller, o jornalista.
O alemão chamou os dois pelo nome completo. Os dois olharam para a figura muito branca encasacada que se aproximava, com um sorriso impecável no rosto, um bloco de notas nas mãos.
— Dificuldades com o carro, pelo que estou vendo. – observou. Adam recostou ao lado da porta do passageiro, soprando o ar quente para dentro das mãos em concha, sem querer responder. Não tinha gostado do homem, por algum motivo.
Ao contrário do amigo, Peter foi simpático, pois agora que Nate estava preso, achava que deveriam abrir o jogo para os jornais.
— É, essa coisa só pega quando quer... – disse. Batendo no teto do carro. O frio se acentuava cada vez mais, e as palavras de Peter saíram com rajadas quase imperceptíveis de vapor de seus lábios.
— Desculpe ser um incômodo, mas importar-se-iam em responder algumas perguntas enquanto esperam pelo guincho?
Adam ergueu uma sobrancelha com um olhar cômico para o jornalista, pelo modo como falava. Peter apoiou o cotovelo no teto do veículo e respondeu:
— Não vamos a lugar nenhum, né?
O jornalista soltou uma risada incômoda, parecendo forçada e falsa. Mas era difícil julgar, pois tudo sobre ele parecia forçado e falso de alguma maneira. Ou ele era um grande fingidor ou um homem simplesmente diferente.
— Então, Sr Belmont, pode me contar o que aconteceu ontem à noite, sob seu ponto de vista?
Peter abriu a boca sorrindo, mas segurou o que quer que fosse dizer e parou para pensar. Olhou rapidamente para Adam e finalmente notou no olhar do amigo como ele parecia desconfortável com a situação, principalmente com Edmund Düller.
— Na verdade, nem depus na Delegacia ainda, não sei se posso. – respondeu, esquivando-se. Adam aprovou a desculpa.
O jornalista torceu o nariz e as sobrancelhas endureceram.
— Na verdade jovem, não há nada que lhe impeça de contar a um jornalista qualquer coisa que você tenha presenciado. Não se preocupe com a polícia, pode me contar. – ele falava de forma mais lenta, mas ainda era muito articulado.
Peter pensou sobre o que acabou de ouvir e não precisou olhar para Adam para saber que ele queria que continuasse evitando o repórter.
— Desculpe Sr Düller, mas ainda estou meio confuso com o que aconteceu, entende? Foi com minha própria irmã e eu não me sinto...
— Sr Savage, ficou me devendo uma resposta ontem à noite, como deve se lembrar. – o repórter virou-se imediatamente para Adam, parecendo esquecer que Peter estava ali. O sorriso voltara, assim como seu tom robótico empolgado.
Adam desviou o olhar para próprias mãos e as enfiou pelos bolsos do casaco.
— Sr Düller, o chefe Belmont em pessoa nos pediu sigilo sobre o caso até que o cara fosse pego.
— Mas Sr Savage, já lhes disse que não há nada em qualquer lei que os impeça de me contar sobre...
— É, certo, Sr Düller, mas Martin Belmont é pai do meu amigo e é como da família para mim, não vamos desobedecê-lo só pra ajudar na sua matéria!
O repórter deixou os braços caírem ao lado do corpo. Sem palavras pela primeira vez, baixou os olhos, voltando-os rapidamente para os rostos de Peter e Adam, procurando o que dizer. Estava tão... Tão empolgado com essa matéria, com o assassino em Roule County, o envolvimento da família de um policial, estudantes locais. Seria uma ótima reportagem, tão boa que talvez fosse capaz de elevá-lo ao cargo de redator chefe do County Journal. O jornal esteve se tornando medíocre desde a última publicação polêmica sete meses atrás e ele, Edmund Düller, poderia ser o homem que levaria o jornal de volta ao prestígio com uma matéria exclusiva. E como ousavam esses dois garotos se colocaram como empecilhos para ele?
— Tenho certeza que ele vai pegar nossos depoimentos ainda hoje e provavelmente amanhã poderemos falar alguma coisa. – disse Peter, tentando reconfortar o homem, como sempre fazia quando via alguém aborrecido. Mas Edmund Düller se afastou rápido e sem olhar para trás.
Sentindo-se esquisitos, e Peter se sentindo culpado, os dois amigos se olharam dos lados opostos do carro, talvez prestes a dizer alguma coisa, quando o celular do roqueiro tocou. Seu toque era um frenético solo de guitarra, mas só o começo foi ouvido. Ele atendeu depressa:
— Alô?
Adam ficou observando. Peter arregalou os olhos e deu um murro no teto do carro, apoiando a cabeça no braço.
— Amanda, desculpa eu esqueci que...
Ele ficou quieto de novo, escutando a garota do outro lado da linha. Olhou para Adam com um olhar de súplica, sem saber o que dizer. O amigo deu de ombros.
— Mas você sabe bem que a polícia apareceu lá e prendeu o suspeito de ontem! Ainda por cima, levaram minha irmã pra depor também! Como eu ia lembrar de você com tanta coisa na cabeça?
— Ah, você não disse isso... – sussurrou Adam, arregalando os olhos. Ele quase pode ouvir a voz de Amanda pelo telefone, agora que provavelmente ela gritava com Peter.
— Não, Amanda, não desliga! – pediu o roqueiro, tarde demais.
Ficou ali, parado, celular em mãos, observando a tela que dizia: Chamada encerrada. Seu jeito com as mulheres continuava o mesmo de antes, Adam via agora. Peter nunca fora de se atirar nas garotinhas que gostasse, e só houve um caso em que isso aconteceu, quando tinha seus 11 anos. Adam se lembrava bem de como ele estragou tudo, já que por algum motivo ele sempre achou que podia dizer tudo o que passasse pela cabeça para uma mulher. Talvez pudesse com Lílian e com sua mãe, mas não com qualquer outra.
—Eu falei besteira... – disse, arrependido. – Não falei?
— Só um pouco... Na verdade não muita, eu concordo com você. Tem muita coisa acontecendo, mas vai tentar explicar isso pra ela?
—Sem chance.
— Sem chance.
Nesse momento um ronco profundo e constante veio se aproximando dos dois. Uma moto, os dois pensaram, e quando se viraram para olhar, se maravilharam com o veículo que vinha se aproximando do carro parado de Peter. Era uma moto preta, com aparência agressiva , como uma motocicleta de corridas. Seus dois faróis redondos eram posicionados um acima do outro, mas estavam apagados. Os pneus grossos gritaram agudo no asfalto quando ela freou, bem ao lado de Peter.
O piloto desceu, baixando o descanso e tirando o capacete cinza. Os olhos selvagens e as sobrancelhas arqueadas e inclinadas, agora mais visíveis do que na última vez, encontraram os de Peter e de Adam.
Era Aaron Scuddler.
O cabelo castanho estava seco agora, mas bagunçado, e de certa forma combinava com sua aparência suja. O casaco de couro marrom estava muito desbotado e a calça jeans apesar de não estar rasgada, parecia ser mais velha que o carro de Peter.
— Problema com o carro?
Pete demorou um pouco pra responder, tentando ler o nome do fabricante da moto, mas a perna de Aaron estava na frente.
O coração de Aaron batia a passos controlados, mas bombeava com muita força. Era a adrenalina e as sensações que ela lhe causava. Músculos dos braços e das pernas endurecidos, respiração pesada, audição e visão supersensíveis, boca seca. E, ele sabia, ia se sentir assim para sempre; mas tinha se acostumado a viver com ela, desde o incidente, dois anos atrás. A única coisa que não tinha aprendido ainda era como controlá-la.
— É, morreu de repente, não sei o que aconteceu. – Peter respondeu, depois de ver o nome do fabricante, com um sorrisinho orgulhoso no rosto.
Adam deu a volta no carro para se aproximar e apreciar a moto do homem. Era importada, sem dúvida.
— Eu entendo uma coisa ou outra de motores velhos, posso dar uma olhada se quiser.
— Seria ótimo! Acho que o guincho demorar e vamos ter que esperar aqui no frio. – Peter foi até o capô e o abriu. Aaron já estava ao seu lado, tirando as luvas de couro das mãos, sentindo o frio do ar nos nós dos dedos. Adam ficou um pouco mais afastado, atrás dos dois por não querer atrapalhar. Carros não era sua especialidade.
Adam levou a mão ao rosto, lembrando-se de repente. Sua bicicleta ainda estava lá em frente à escola, acorrentada às grades do restaurante árabe, cujos donos um “dia ainda cortariam sua cabeça”, segundo os irmãos Belmont. Tenho que pegá-la antes que eles acabem achando que deixei de presente. Mas Adam, nesse exato momento, deveria estar se preocupando com outra coisa.

4
Martin estava fumando seu último cigarro antes de começar o interrogatório. Pelo menos sua parte do interrogatório, já que nesse momento o suspeito estava “conversando” com Bob. O chefe achou que o novato fosse se afobar e deixar-se levar pela tensão de conversar com um criminoso, mas estava indo muito bem. Talvez fosse um bom dia para a polícia. Talvez, até, pudessem arrancar uma confissão do garoto ainda hoje e livrar-se dessa preocupação. Para Martin, como pai de Lílian, era sua maior vontade.
Ele via através do vidro permeável que Natanel estava calmo, mas inquieto. Bob a sua frente, fazendo um bom trabalho, sorria de lado.
Bob não era exatamente um galã de cinema, mas era ótimo com as mulheres. Entendia de poesias, de filmes românticos, de sentimentos. Mas não era de forma alguma um sentimental, era um aproveitador e oportunista, que geralmente sabia o que dizer e a forma como dizer.
—Então, Natanael Hensen, você disse que é de Connecticut...
— Certo.
—... e que foi à Marches County visitar um amigo...
— Certo.
—... chamado Tom West. Estou acompanhando até aqui?
—Perfeitamente, policial. – Nate sorriu, e Bob retribuiu.
— E por que veio pra Roule County?
—Intercâmbio. Meus pais não queriam me mandar pra uma cidade assim pequena, mas eu insisti que ia ser bom pra minha formação conhecer esses lugares.
— E o que aconteceu na locadora, ontem à noite? – continuou, levantando os olhos para o rapaz.
—Eu entrei e comecei a escolher uns filmes. Depois uma moça loira entrou e veio escolher perto de mim. Puxei assunto, nada demais...
— Sobre o que falaram?
Nate demorou a responder, simulando dificuldade para se lembrar. Ele lembrava perfeitamente.
— Ela queria alugar um filme de terror pra ver com... o namorado, eu acho, eu sugeri alguns...
— Irmão.
— Que seja... – Nate deu de ombros e continuou sua versão. – Olha, eu não sei o que ela alegou, mas eu não tentei nada contra ela. Eu a achei bonita, paguei os filmes pra ela, não vejo nada de mais nisso.
— Ela disse que você a puxou para o lado de fora da loja e perguntou se ela morava perto... Não acha que foi esquisito? – inquiriu.
— Não! – disse, fingindo sentir-se ofendido com uma maestria teatral. – O cabeludo da locadora ficou olhando pra ela de um jeito esquisito, e você sabe do que eu estou falando. Tirei-a de lá porque fiquei com nojo do cara, ele deve ter uns 40 e ela uns 16!
— E porque perguntou onde ela morava? – Bob agora se debruçava sobre a mesa, tentando ser o mais incisivo possível.
—Pensei em oferecer uma carona...
A porta abriu de repente e Martin entrou sem cerimônia. Bob levantou-se imediatamente com uma olhar de despedida para Natanael e seu superior ocupou a cadeira. O novato saiu sem dizer coisa alguma, fechando a porta.
Um silêncio enfumaçado encheu a sala; Martin terminava o cigarro e soltava rodelas de fumaça no ar. Apagou a ponta na própria mesa de mármore, despejando-a com um peteleco. Largou-se sobre a cadeira e cruzou as pernas, soltando a última baforada de fumaça daquele cigarro, parecendo relaxado e pensativo. A introspectividade do policial deixava Natanael curioso, mas não a ponto de fazê-lo transparecer; seu olhar continuava inocente e incompreensivo. Martin remexeu nos bolsos, simulando que procurava alguma coisa até que tirou um envelope pardo do bolso na frente da camisa. Nate reparou nas feições do coroa, estimando 40, talvez 50 anos para o policial, a julgar pelas rugas duras abaixo dos olhos e o cabelo esbranquiçado e ralo nas têmporas. Quando notou, o envelope estava rasgado e jogado a um canto da mesa. Logo abaixo de seu queixo, havia algumas fotos Polaroid. Nelas, Osmar Tellore, o dono da locadora assassinado, aparecia do modo como a polícia o havia encontrado. Estava detrás do balcão da locadora, da qual Natanael se lembrava perfeitamente. Uma das fotografias tinha sido tirada bem próxima do rosto: o cabelo oleoso estava solto e espalhado pela face semidesfigurada. O nariz torno, a boca inchada e aberta, olhos roxos e inchados e cortes por todo o rosto.
Sem mencionar o sangue, muito sangue.
As outras fotos tinham um enquadramento mais afastado e mostravam o local onde seu corpo estava. Estava completamente nu e havia sangue por todo o lado e parecia inacreditável que todo ele tivesse saído apenas dos ferimentos no rosto. E não saíram, pois conforme Nate observava mais atentamente, viu outros ferimentos pelo corpo. Não eram lacerações, mas sim contusões, marcas roxas enegrecidas, abaixo do pescoço, pelos ombros, pernas e mãos. E no pulso esquerdo ele notou, quase imperceptível devido ao sangue e todas as outras coisas que chamavam atenção, uma marca de mordida. Humana e não muito profunda, mas o suficiente para deixar uma marca.
E as peças se encaixaram em sua cabeça. De repente ele tinha certeza de que tinha sido rastreado pelos outros até Roule County. Tinha certeza de que estava sendo perseguido ali, vigiado por um deles, provavelmente Aaron. E sabia que teria de agir rápido para se posicionar e defender dos ex-amigos. As imagens deles vieram rápidas a sua cabeça, formando o que seria um pequeno pesadelo à luz do dia: Giovanni, Aaron, Collin e Keith, numa rua escura sob o luar. Nate teve medo, mas controlou-se. Você tem tempo.
— Bem feio, hã? – perguntou Martin. Ao contrário de Bob, ele não sorria. Não sabia ser cínico. Em suas mãos estava um pedaço de papel, do qual ele leu um trecho à sua maneira. – Nariz, maxilar, antebraços esquerdo e direito, quatro costelas e diversos ossos da face fraturados. Danos cerebrais leves, com pequeno coágulo. Três dentes soltos e ruptura do baço. E mais. Hemorragia séria.
Nate ficou quieto, olhando o chefe de polícia fazer seu trabalho, enquanto parte de sua mente estava longe, pensando no quarteto que o perseguia.
— Tem idéia de como ele poder ter acabado assim, Sr. Hensen?
— Não... Não faço idéia, policial. – mas ele podia constituir a cena perfeitamente em sua cabeça. – Talvez um assaltante.
— Não, não faça isso. Não tente explicar, porque você sabe exatamente o que aconteceu. – disse, elevando levemente o tom de voz, sem perder o autocontrole. Ele ainda precisa manter a compostura para que o rapaz soubesse quem estava no controle ali. Martin tinha a sala, a palavra, o distintivo e a arma. – Sabe, rapaz, esse assassinato tem duas coisas desconcertantes, que eu não entendo.
Ele fez uma pausa, durante a qual Natanael não se pronunciou. Do outro lado do espelho, Bob observava o superior, esperando aprender com ele.
—Uma delas é que tudo isso, todo esse estrago foi feito por mãos nuas. Ele foi espancado. – outra pequena pausa, e Martin desejou ter outro cigarro para tragar. – Até aí, tudo bem, já vi espancamentos como esse, mas tem uma diferença dos outros. Quem fez isso com ele, fez sozinho. E em menos de 10 minutos.
Bob estava colado no vidro, observando atentamente. Prestava atenção nas expressões de Natanael e tinha a pequena impressão que a confiança estampada em seu rosto até alguns minutos atrás sumira, pelo menos em parte. Mas por quê?
Por baixo da mesa, Natanael balançava os pés. Precisava sair dali, e rápido. Martin com certeza iria deixá-lo preso por prevenção e ali numa cela ele seria alvo fácil, além do fato de que precisava pôr todos os seus planejamentos em ação o mais cedo possível. Sua cabeça trabalhava a mil.
— Agora me diga, Sr. Hensen quem seria capaz de espancar um homem até a morte em menos de 10 minutos? Que monstro faria isso de uma forma tão bruta que a vítima não teria como se defender?
Martin quase perdeu o controle do tom de voz, pensando em sua filha. O rosto do jovem era completamente inocente, mas já vira criminosos de aparência mais inofensiva. E inofensivo era estritamente o contrário de Natanael Hensen, um assassino de sangue frio, covarde e muito perigoso. Exatamente como Peter, só de pensar que um homem tivera algo em mente com Lílian...
— Sua filha pode estar em perigo, policial. – disse Nate, jogando sua primeira carta. Já sabia o que fazer.
Martin se calou de repente, e seu coração disparou.
— Cale-se jovem, não tenho paciência para...
— Ela está bem próxima, não é? Dando o depoimento? Não se sente irresponsável por mantê-la tão perto do suspeito de assassinato?
Martin fechou os punhos sobre o colo, respirando o mais fundo que podia, sem conseguir controlar a raiva.
— Responda as perguntas, rapaz! Porque você o matou?
— Não o matei, juro que não. – disse, dando de ombros. Tanto Bob quanto Martin perceberam a diferença na personalidade do rapaz, que deixara de se manter na defensiva e demonstrava mais frieza. Este modo de agir, ao contrário daquele jeito gentil, parecia ser seu modo natural de ser. Já não se via nem vestígio do inocente e puritano estudante de Connecticut. – Mas quanto a sua filha, não sei o que me acusaram de tentar, mas tenho certeza que teria adorado fazer...
Martin saltou sobre a mesa e agarrou os ombros do rapaz, derrubando-o no chão sem pensar e esmurrando seu rosto, com força, várias vezes seguidas.
Bob, detrás do vidro, xingou baixo e pôs sua pistola no coldre, correndo para a sala ao lado. Quando abriu a porta, apontou a arma imediatamente para os dois, atracados no chão.
Nate viu a porta abrindo, e a oportunidade chegando. Sem fazer muita força, usou as pernas para jogar Martin Belmont para o lado e levantou-se rápido, ignorando o aviso de Bob para permanecer parado. Investiu contra ele o mais rápido que pôde, e ouviu a arma disparando. Bob foi arremessado para o lado por Natanael como se fosse uma criança leve sendo empurrada no balanço. No corredor, Natanael bateu a porta de ferro com força, e com mais um pouco de força, arrancou a maçaneta, deixando os dois do lado de dentro, trancados.
— Tsc... – resmungou baixo, quando sentiu o sangue escorrer pela camisa. A bala da arma de Bob entrou em sua barriga pouco acima do umbigo e o sangue jorrava, começando a manchar toda sua roupa.
Levantou a camisa, recostado na parede, ouvindo os dois policiais discutirem dentro da sala, tentando abrir a porta em vão. Com a ponta do dedo indicador, cutucou o buraco da bala a procura dela. Sem muita cerimônia, tirou-a com os próprios dedos, sem um gemido, sem uma reclamação. Sua mão nem mesmo tremia. Jogou o pequeno projétil no chão, o tilintar do ferro ecoou pelo corredor. Ele olhou preocupado de um lado para o outro, ouvindo os outros policiais chegando e apressou-se para o fim do comprido corredor. Antes de alcançar a porta, ouviu outros avisos para permanecer parado, seguidos de mais disparos, mas nenhuma bala o atingiu.
Chegou ao estacionamento, vendo algumas viaturas paradas, além de alguns carros civis dentro da área confiscada. Rapidamente, tirou a camisa branca, encharcada na parte da cintura com seu sangue, jogando para um lado qualquer e pondo-se a correr novamente. Em sua barriga, logo acima do umbigo, não havia mais ferimento algum.
Passando por uma área escura, Natanael entrou na sombra como homem, e deixando suas roupas para trás, saiu da sombra como um peludo lobo preto.

5
— Tenta dar a partida agora. – gritou Aaron, debruçado sobre o motor do Camaro, debaixo do capô.
Peter, dentro do carro, girou a chave e ouviu o motor tentar e tentar, com aquele som engasgado, até que finalmente pegou. O ronco asmático das velhas engrenagens começou novamente e ele e Adam deram graças a Deus por não precisarem esperar o guincho. Estava frio como nunca e, com o aquecedor desligado, eles congelavam aos poucos dentro do carro, mesmo com janelas fechadas. Peter saiu para cumprimentar Aaron.
— Você acabou de salvar dois homens da hipotermia, Aaron. – disse, estendendo a mão.
O rapaz a apertou, com força, sem conseguir se controlar devido à adrenalina, mas o roqueiro não sentiu muito, pois sua mão estava gelada e muito pouco sensível.
— Eu disse que era bom com motores. Mas o seu, eu acho, não vai durar muito. – enquanto falava, sentiu uma vibração no bolso da apertada calça jeans. Seu celular vibrava, e Aaron sabia quem era. Apenas 4 pessoas tinham aquele número.
Peter ouviu com atenção e guardou as palavras exatas do samaritano para usá-las com o pai quando fosse lhe pedir um carro novo. Mal sabia ele, que nesse exato momento, o pai começava o interrogatório do suposto assassino.
Adam também saiu e os dois amigos agradeceram ao homem desconhecido, reparando em sua moto.
— Bom, se eu fosse você também tocava o caminho porque acho que ainda vai chover esta noite. – comentou Pete, voltando para dentro do carro. – Se cuida, Aaron.
— Vocês também, caras. – respondeu, ansioso para que os dois se afastassem logo. A vibração do aparelho o estava irritando. Na verdade, quase tudo ao redor o irritava. Os ruídos metálicos perturbantes e profundos dos motores dos carros que passavam, as pessoas que transitavam gritando aos celulares... O próprio som de sua motocicleta potente o irritava um pouco, mas sobre ela, com o vento no rosto e o mundo passando em alta velocidade, era mais fácil controlar a adrenalina.
Os dois amigos saíram, virando no final da rua e Aaron não hesitou em atender o celular imediatamente. Se fosse qualquer outra pessoa, já teria desistido depois de tantos toques.
— Comp. – atendeu, mas com a voz controlada, diferente da última vez.
— Aaron. – disse a voz do outro lado. – E os nossos meninos?
— Já peguei o cheiro deles. Não vou ter problemas.
O homem do outro lado da linha, Giovanni Compacci, conhecido como Comp por Nate, Collin, Keith e Aaron ficou em silêncio por um tempo. Parecia estar conversando com alguém do outro lado da linha.
— Estamos na cidade.
— O quê?! Por que? – perguntou, de pé na rua. Seu tom de voz elevado se fez ouvir sobre o estrondos dos carros, e muitos olhares estavam sobre ele agora.
— Controle-se. Já foi tomada a decisão. Eu e Collin estamos te esperando no seu quarto no hotel. Precisamos planejar nosso próximo passo.
— Nate está preso, sabia? Foi algemado hoje de manhã. – retrucou Aaron.
— Sim, mas você acha que vai simplesmente entrar pela porta de delegacia, rasgar as barras na cela e matá-lo? Precisamos ser discretos. Além do mais, não sabemos se ele já marcou os dois rapazes. Você viu algo?
— Não, eles estavam agasalhados. Mas acho que ele não teve tempo de...
— Não podemos ter certeza. Eu e Collin precisamos estudar o próximo passo.
— Mas eu disse a você que só tomaria parte disso se Nate...
— Vou repetir, Aaron, não se preocupe. Nate é seu, só seu. Mas você não vai chegar a ele sozinho. Aquele cãozinho sabe ser evasivo e sabemos disso. Quanto aos outros dois, eu e Collin decidimos que talvez seja necessário matá-los. Mas não por enquanto.
— Não estou gostando disso, Comp.
— Não estou pedindo pra gostar, Aaron, e você não vai desobedecer, vai?
Aaron rosnou. Um rosnado de verdade. Uma senhorita passava a seu lado nesse momento, empurrando um carrinho de bebê onde sua filha de apenas 1 ano estava adormecida e agasalhada. Ao ouvi-lo, a moça sentiu o coração bater acelerado, sentindo o medo tomar conta de seu corpo: medo primordial, como se seu cérebro soubesse que ela deveria temer o que quer que o rapaz fosse, por simples instinto de preservação. A criança começou a chorar.
O choro irritou Aaron ainda mais, e ele sentiu a mão tremendo, a adrenalina pulsando em suas veias, que agora pareciam tão apertadas... Seus músculos se contraíram até a rigidez de uma rocha e sem se controlar, ele fechou o punho, esmagando o celular.
Enfurecido, ele sequer teve conhecimento do que fez. Virou-se rapidamente e segurou as rodas do carrinho, virando-o para o lado, sacudindo-o. A criança caiu na calçada e a mãe gritou desesperada, vendo o rapaz erguer o carrinho vazio e arremessá-lo para o outro lado da rua.
— Ei, seu babaca, ta maluco? – perguntou um homem que vinha se aproximando de punhos fechados. Como podia um garoto como ele ter sangue frio para machucar uma criança? A mãe pegou a filha no colo e se afastou dos dois, vendo o perigo nos olhos de Aaron.
O homem, revoltado pela maldade que acabara de ver, não notou que o rapaz tremia e o olhava com uma expressão assassina. Quando ergueu o braço para acertá-lo, o soco de Aaron veio mais rápido e com uma força arrebatadora, acertando em seu peito. Se estivesse prestando atenção, teria sentindo alguns ossos do homem sendo esmagados por sua mão como meras cascas de ovos.
Lançado para longe, com uma dor insuportável no tórax, o homem ouviu o rosnado de Aaron novamente, seguido do grito da mulher e o choro de seu bebê. E então ele apagou.
Depois de despejar um pouco da adrenalina, ele voltou a se controlar, vendo aquilo que tinha feito. O coração batendo mais devagar, e a dor do arrependimento o atingindo novamente, ele virou as costas e se apressou na direção da moto. Não podia ficar ali por muito tempo, pois não conseguia se controlar.
À apenas alguns metros de distância, detrás do vidro de uma perfumaria, Edmund Düller guardou sua câmera fotográfica, estupefato com a cena que havia acabado de fotografar.
...
No quarto 706, no Hotel The Rose, Collin abriu as janelas e as cortinas. A noite era escura lá fora e o vento úmido cortava entre os prédios com um som fantasmagórico. Mesmo com os cabelos presos, podia senti-los revoltos pelo vento e seu rosto sendo umedecido pelas gotículas da chuva. Lá embaixo, carros passavam tranquilamente, iluminados pelos postes, muitos metros abaixo dele. Viu seu carro também, azul escuro, um pouco velho e logo ao lado dele, a moto de Aaron, recém estacionada. O amigo acabara de entrar no prédio.
Mesmo com algumas preocupações importantes na cabeça, como Nate e os tais garotos Adam e Peter, sua mente ainda estava longe, naquela lanchonete em Marches County, nas atendentes. Cada era tão bonita individualmente que ele mal sabia em qual focar os pensamentos; a morena de cabelos vermelhos nas pontas, a baixinha sorridente e até mesmo Annah, que ele sabia ter despertado o interesse de Keith. Apesar de isso ser raro e eles não se intrometerem com as parceiras um do outro, Collin era, acima de tudo, um apreciador do sexo frágil. Sempre via algo de charmoso, elegante, atraente ou interessante em qualquer mulher.
No sofá no meio da sala, estava Giovanni, ou Comp, aparentando quase seus 30 anos. A cabeça raspada já tinha algum cabelo ralo crescendo, deixando-a com a aparência áspera. Sua pele clara parecia natural ali na cidade, ao contrário de seu visual despojado. Usava uma camiseta preta e cavada e uma calça jeans caída com correntes penduradas, além de tatuagens não muito visíveis, que iam de ombro a ombro, passando pelo peito e pelas costas. Tinha o controle da TV nas mãos, mudando de canais à procura de algo. Pulou rapidamente a parte dos desenhos, que o irritavam, e mais rápido ainda a seqüência de canais científicos. Toda aquela baboseira era irrelevante pra pessoas comuns, ninguém jamais usaria aquele conhecimento. Comp costuma dizer que as pessoas repetem o que vêem na TV para parecerem inteligentes, o que era verdade. Parou de repente, interessado no filme que passava num canal de filmes de ação.
— Um Lobisomem Americano em Paris. – disse com um meio sorriso no rosto.
Collin riu da janela e voltou o rosto para dentro.
— Sabe, até que esses caras não erraram muito feio. – constatou o grandalhão.
— Tá brincando, né? – perguntou Comp, vendo algumas cenas de arrancar risos. – Como se licantropia fosse alguma doença...
— É um traço genético e nisso eles acertaram. – retrucou.
— E olhe pra eles, como essas coisas meteriam medo em alguém? Olha essa transformação, parece que ele está morrendo de dor!
A porta abriu de repente e Aaron entrou, respirando um tanto acelerado e com algum suor pela testa.
— Ei. – bateu a porta, entrando sem demora e encarando a televisão. – Que porcaria é essa?
— Um clássico. – respondeu Collin, sorrindo ao mesmo tempo em que Comp deu sua resposta:
— Uma merda.
Aaron sentou-se à mesa, revirando tudo o que tinha sobre ela, balançando a perna, inquieto. Encontrou um isqueiro próximo ao cinzeiro e ficou brincando de acendê-lo. Comp ainda prestava atenção no filme, desdenhando-o em silêncio. Tão longe da verdade.
— Cadê o Keith? – perguntou Aaron, passando a mão por cima da chama do isqueiro.
Collin espirrou na janela e voltou o corpo para dentro, fechando-a novamente. A chuva começava a apertar e fazer barulho nos vidros de todo o Hotel. Remexeu o bolso da calça a procura de um pacote de chicletes para dividir com os dois.
— Está a caminho.
Os três se sentaram para terminar de assistir o filme, Aaron ao lado de Comp no sofá e Collin sentado no chão por seu tamanho, e faziam comentários sobre como os criadores haviam errado ou acertado em determinada. O tempo passava e ficava mais tarde, até que ao final do filme, quando desciam os créditos a porta se abriu e Keith entrou, molhado pela chuva.
— Keith. – cumprimentou Comp. Aaron apenas acenou com a cabeça.
—Se vamos planejar, melhor fazermos isso agora. – disse Keith, fechando a porta e trancando-a em todas as fechaduras. – Nate fugiu da cadeia.