sexta-feira, 26 de março de 2010

Projeção - A Batalha que é escrever

Eu já vi o filme inteiro, praticamente, na minha cabeça. Início, meio e fim; problemas e soluções; conversas e discussões; personagens e personalidades, lugares e cenários.

O esqueleto desse conto que chamei de Paragon já está pronto, a trama, quero dizer. Mas chegar até esse ponto de planejamento, que muitos acham difícil, é como engatinhar pra um escritor, e eu nem me considero um ESCRITOOOOOR...

Pensar no início, no meio e no fim de uma história, é muito bom e um ótimo começo, mas ter esses três momentos não significa que você tem uma história. Significa que você tem uma... Sinopse, digamos assim.
Vou usar de exemplo Harry Potter e a Pedra Filosofal porque tenho certeza que todo mundo já leu. Se não, saiam daqui ¬¬. Eis o início, o meio e o fim.
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Harry entra na escola e descobre que é famoso, e gosta da reviravolta positiva em sua vida.
Harry descobre que a vida nova não é tão fácil e que alguem está tentando matá-lo, e suspeita do Prof. Snape.
Harry enfrenta seu arquiinimigo, que revela ser o Prof. Quirrel, o vence, e fica tudo bem.
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É bem mais elaborado que isso, mas vocês entendem. Eu tenho o começo, o meio e o fim de Paragon, mas o que pouca gente leva em consideração é todo o resto.

Tipo o que vai se passar entre o começo do começo e o meio do começo, até o fim do começo. Pular direto pra trama é deselegante e o livro vai parecer um Bis: bom, mas não dura porra nenhuma. É preciso encher os espaços entre os pontos chave da trama, e os espaços entre os espaços menores. É ler e reler, pra ter coerência e retidão.

Dá trabalho. E muitas vezes tenho preguiça, mas paciência. Garanto a vocês que esse livro sai, cedo ou tarde.

É só eu tomar jeito.
Pensando aqui e agora comigo mesmo, acho que vou me obrigar todos os dias a escrever pelo menos um parágrafo, mesmo que eu não goste... De repente numa dessas vêm aquela enxurrada de idéias e eu consigo preencher um grande espaço.

Bom, vou indo lá.


Ah, a respeito do Quinto Capítulo, creio que já tem 3 páginas e ainda não tem título.

Beijos, moças. E abraços, caras.





PS.: Alguém aí gosta de vampiros? Aguardem.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Quarto Capítulo - Nate

1

Ele deslizou as pontas dos dedos pela perna da moça, subindo lentamente desde o joelho até onde ela permitiu; Jennifer logo segurou aquela mão, fitando-o com censura e ao mesmo tempo sensualidade. Ela sorriu logo em seguida, conforme ele se aproximava para beijá-la novamente. Bill entrelaçou os dedos pelos cabelos cacheados da moça, segurando sua nuca e sentiu ambas as mãos dela segurarem seu rosto.

Sem pressa, os dois se beijaram por quase um minuto, até que novamente a mão de Bill deslizou pelo ombro de pele suave da moça, empurrando para o lado a alça de sua blusa e desta vez ela não esboçou reação. Era a primeira vez tanto para ele quanto para ela e seria inesquecível mesmo que o namoro estivesse fadado a terminar dali a algumas semanas.

A noite lá fora estava quieta, com exceção da chuva, e fria a ponto de doer o corpo, mas ali dentro do carro os dois estavam aquecidos. O vidro ia embaçando lentamente, mais lentamente do que os dois iam se livrando de mais umas peças de roupa. Em alguns instantes, o sutiã de Jennifer foi jogado sobre o volante e Bill notou. Iria se lembrar daquela imagem por muito tempo.

—Eu te amo. – disse ela, com o rosto avermelhado por estar seminua na frente do namorado pela primeira vez. Tinha o braço cruzado na frente dos seios. Sorte dele que ela estava decidida a fazer aquilo esta noite. Nas condições atuais do namoro, Bill era o que ela diria ser: o cara certo; por quem ela tanto esperara esses anos. Semanas depois ela estaria chorando com a mãe, se culpando e perguntado a si mesma o que havia visto nele. Ele, por sua vez, já estaria em outra.

—Eu também... – sussurrou ao pé de seu ouvido, mordendo com gentileza seu pescoço.

As carícias inocentes de alguns minutos atrás foram se transformando em abraços mais calorosos e envolventes. Os dois já respiravam mais aceleradamente, talvez por estarem num carro fechado e o ar ficar mais escasso a cada minuto, talvez pela excitação, mas em ambos os casos, estava quente ali.

Ele a deitou no banco de trás com um sorriso no rosto, usando os casacos dos dois para colocar sob a cabeça dela. Queria deixá-la confortável. Com suas mãos delicadas e brancas, como todo seu corpo, Jennifer abriu o botão de sua calça jeans e baixou o zíper. Sobre ela, esperando com o coração batendo forte, Bill observava, tentando não ser apressado e deixá-la constrangida. Conhecia a namorada e sabia que deveria ser ela que ditaria o ritmo, mas estava difícil controlar seus hormônios. Ele ajudou-a a erguer a cintura para começar a baixar a calça, sendo o mais delicado possível. Ela própria se pronunciou e pôs as mãos na cintura de Bill, abrindo sua calça.

— Tira logo isso. – disse ela. Ele mal pôde acreditar no que ouviu. Seus hormônios finalmente tomaram lugar da razão, como já deveriam ter feito mais cedo.

Deitou-se por cima dela, sorrindo um tanto afobado. Depois de terem chegado tão longe, ela não poderia voltar atrás e isso o reconfortava muito.

Mas lá fora, de repente, o som alto de uma freada brusca cortou a noite, seguido do som vítreo do impacto. Algum carro tinha batido. Bill e Jennifer tentaram olhar pelas janelas, mas estavam embaçadas demais. Esticando-se para o banco da frente, ele esfregou a mão no vidro tentando ver o máximo possível. Um sedan preto havia colidido fortemente com um poste do outro lado da rua e havia sangue no pára-brisa, por dentro. Assustados, os dois mal acreditaram quando viram um robusto lobo preto saltar sobre o carro em que estavam e correr para longe, na chuva.

—O que foi isso? – perguntou a garota.

—Foi um... Acho que foi um... Cachorro. – respondeu, mesmo com sua mente gritando para ele que não poderia ter sido um cachorro. Era maior e tinha olhos amarelados. Que tipo de raça de cachorro era assim?

Bill ficou decepcionado quando virou o olhar para dentro do carro e viu Jennifer abotoando o sutiã nas costas.

— O que ta fazendo? – perguntou, incrédulo.

Mais incrédula ainda, Jennifer o olhou, vestindo-se rapidamente. Quem dera ela tivesse essa pressa na hora de tirá-las, ele pensou.

— Vamos lá ajudar! – respondeu, atrapalhada para vestir as calças.

— Mas....

— Alguém se machucou, Billy, olha o sangue! – disse, a voz afinando com o nervosismo.

Depois de vestidos, os dois saíram para a chuva e para o frio, apressados na direção do carro batido. Bill não podia acreditar que isso estava acontecendo. Quem sabe quanto tempo demoraria para que eles dois se encontrassem num momento como o de hoje. Que Deus o perdoasse, mas Bill desejou que o acidente tivesse ocorrido em outra rua. Seguindo sua namorada, ele foi até o carro acidentado, discando para a emergência em seu celular.

...

Depois de fugir da delegacia sendo alvejado, abandonar as roupas e correr nu no frio e na chuva, Nate estava ficando de mau humor. Mesmo agora sobre suas quatro patas, com o grosso pêlo negro para lhe proteger melhor do frio, sentindo-se livre como se nada pudesse impedi-lo de correr, ainda estava preocupado. Era difícil focar os pensamentos nesse estado, com a adrenalina fluindo por todo seu corpo em quantidades fatalmente elevadas; em vez disso, estava concentrado em enxergar com seus amarelados olhos lupinos. Era difícil distinguir formas e cores, mas o faro deveria ajudá-lo a chegar aonde ele queria, mesmo com o solo molhado para atrapalhá-lo.

Numa certa esquina, quase foi atropelado por um carro imprudente em alta velocidade, o que seria um infortúnio e uma maior perda de tempo.

Nate esticava cuidadosamente o focinho a cada dobra de esquina, sondando as ruas e se certificando de que não havia ninguém no caminho para vê-lo. Mesmo com sua cor casual, preta, seu tamanho o tornava suspeito, pois nenhum cachorro vira-lata da cidade tem porte comparável ao seu. Lembrou-se como seria mais adequado ter o pelo acinzentado como o de Aaron, uma camuflagem melhor na cidade. Além do tamanho e dos óbvios olhos amarelados no escuro da noite, o que chamaria mais atenção seria sua velocidade. Projetava-se para frente com a força das quatro patas, mas cuidadosamente devido ao chão molhado e traiçoeiro.

Com alguns planos já feitos em mente, ele adentrou um beco escuro, seguindo um rastro de odor humano. No escuro, Nate transformou-se de novo: seus pelos caíram, simplesmente, desfazendo-se no chão molhado; suas formas humanas brotaram de dentro da pele lupina, rasgando-a; o focinho encurtou-se até seu nariz e seus olhos voltaram à coloração castanha. Nu, com a visão humana agora, correu os olhos pelo local, vendo um grande latão de lixo virado e diversos pedaços de papelão jogados sobre eles. Se se prestasse atenção, era possível ouvir o ronco de um indigente debaixo das tralhas. Sem querer chamar muita atenção, Nate passou a mão pela garganta e a massageou, sentindo as cordas vocais se transformando ligeiramente e retorcendo os lábios num rosnado feroz que pareceu engolir o ruído forte de chuva, ecoando pelo lugar como um trovão. Algo dentro da lata de lixo se sobressaltou e se revirou, assustado. O indigente apareceu, erguendo os pedaços de papelão e olhando assustado para fora. Seu rosto ao ver o jovem nu e encharcado ali no beco, era de incredulidade. Seu coração batia acelerado, bombardeando adrenalina por seu corpo, deixando-o o alerta. Todos os seus músculos estão contraídos, não de frio, mas de medo. Nunca ouvira um rosnado como aquele, e não lhe importava que tipo de criatura o rapaz fosse, ele sabia em algum lugar no fundo de sua mente que deveria ter medo.

O sem-teto usava uma touca preta, com quase furo nenhum, mas muito suja. Um casaco vagabundo de couro sintético por cima de outro casaco vagabundo, e então, uma camisa azulada, quase cinza de tão velha. Nas pernas, uma bermuda imundíssima, mas inteira, que ia até os joelhos do homem. Nos pés, dois tênis diferentes e meias cumpridas, que iam até onde a bermuda terminava. Nate avaliou-as bem, em silêncio, sem mover um músculo.

— Ô! – chamou o sem-teto, erguendo o braço e abaixando-o. – Quê que tu quer? Xô! Essas coisa é minha!

Ele começou a gesticular para toda a outra tralha que estava espalhada pelo beco. Nate jamais teria imaginado que pertenciam a ele. Com uma lata de lixo virada, tudo aquilo parecia apenas tralhas e entulhos.

— Sua bermuda e seu casaco. – disse, estendendo a mão com a palma para cima.

— Hum! – o indigente desatou a resmungar coisas ininteligíveis e apontou-lhe o dedo, gesticulando para sair do seu “território”.

Nate deu um passo na direção do homem e este se encolheu rapidamente para o fundo do beco, erguendo um liquidificador e arremessando no rapaz. Ele protegeu o rosto com as mãos e defendeu-se do arremesso. O indigente apressou-se em sua direção, agitando algo prateado e reluzente no ar. O rapaz reparou, mas não se defendeu.

O sem-teto golpeou Nate três vezes, na barriga, e a lâmina do canivete abriu-lhe três fendas na pele, que começaram a sangrar imediatamente; no entanto, o rapaz não esboçou reação. O indigente ergueu o rosto e o encarou, mais alto do que ele próprio. Sem pressa, Nate segurou o homem pelas roupas e o arrastou até a parede do beco, onde lhe segurou a cabeça e chocou-a contra os tijolos. O baque surdo na chuva foi alto e o homem caiu inconsciente no chão. Nate começou a despi-lo antes que as roupas se molhassem demais.

O casaco estava apertado em seu corpo, mas serviria por enquanto; quanto à bermuda, depois de colocá-la, teve de retirar várias coisas dos bolsos, as quais variavam desde molhos de chaves, uma chave de fenda, panfletos diversos e até restos de comida. Deixou o pobre sem-teto com o restante de suas coisas e o colocou debaixo dos papelões novamente, para que ele não morresse de frio. Se não tivesse abandonado sua carteira na calça, agora na delegacia, teria deixado algum dinheiro para o homem. Ergueu-se, suspendendo um recorte largo de papelão sobre sua cabeça para protegê-lo da chuva. Os cortes no abdome já não estavam mais lá. Caminhou a passos fingidos, como um bêbado, oscilando ao redor do próprio eixo, mas sem parecer exagerado. Seu rosto não podia ser visto e mesmo que o quarteto estivesse tentando rastreá-lo, a chuva e as roupas fedegosas que agora vestia seriam grandíssimos empecilhos para quem o tentasse farejar. Pelo menos por esta noite, ou assim ele se convencia, estava a salvo.

Atravessou as largas ruas do centro da cidade em direção à praça da região, passando por ela, deserta, e pela pequena igreja ali perto, no mesmo quarteirão. Passando-a, logo a seu lado havia uma casa imponente, de frente larga e jardim bem cuidado, com garagem, segundo andar, chaminé e outros requintes. Algumas poucas e fracas luzes amarelas estavam acesas dentro da casa, mas apenas uma lhe interessava. A da janela do segundo andar. Abandonando o pedaço de papelão a um poste, saltou furtivamente pelo cercado e caminhou curvado até debaixo da janela do que parecia ser a sala de estar. Esticando o pescoço, ele viu através da janela e da fina cortina, um senhor sentado no canto do sofá, com uma xícara de café em mãos, assistindo a um programa qualquer. Cruzando a sala ele viu a entrada de uma cozinha e uma senhora gorducha trabalhando nela. Baixou o olhar e arrastou-se até a lateral da casa, apoiando as mãos entre as ripas de madeira das quais era feita, escalando-a com habilidade.

...

Ingrid deu um pequeno grito de susto quando viu uma cabeça no patamar de sua janela, no segundo andar, naquela noite chuvosa. Noite que fora antecedida por uma manhã cheia, na qual ela tivera de se conter em sua sala de aula para não deixar-se atrair pelo novato Nate. Atração essa que não era física, mas de puro interesse e curiosidade, esperando ansiosa pela promessa que ele havia a feito. Promessa de respostas e esclarecimento. Com as pequenas mãos trêmulas, ela abriu a janela para o frio da noite e deixou que Natanel entrasse em seu quarto, sem se importar com o modo como estava vestida, prestes a ir se deitar.

Inevitavelmente, sua mente escorregou para o dia anterior, quando conhecera o rapaz.

2

Era a terceira semana seguida que Ingrid ficava em casa sozinha às tardes. O pai em reuniões, palestras e outros nomes que ele mencionava para agarrar-se ao trabalho, agora que o casamento ia de mal a pior. A mãe, que nunca tivera emprego, decidira começar a prestar um pequeno serviço num salão de beleza, sequer mostrando a cara até as 20:00. O irmão, Terrance, por falta de alternativa seu familiar mais próximo e que a mais compreendia, estava dedicando essas semanas do ano a terminar de organizar o time do colégio.

Ela trocava de canais rapidamente, evitando a todo custo seus livros e tarefas a fazer. O estudo e a solidão a deixariam, senão depressiva, desanimada de encarar o resto do dia. Matar tempo com a TV, por mais precário que pudesse ser, era sua melhor alternativa.

E sua tarde foi salva quando sua campainha soou, às 15:24 daquela terça-feira modorrenta. Ela abriu a porta de maneira informal, ansiosa para ver quem era e arrependeu-se disso. Vendo-o agora pela primeira vez,desejou tê-la aberto com um belo vestido e um mínimo de maquiagem. O rapaz parecia já ciente desse efeito de atração magnética que tinha nas mulheres, pois não esboçou reação quando Ingrid gaguejou levemente para cumprimentá-lo.

Ele se apresentou com um simpaticíssimo sorriso, do mesmo modo como faria com Lílian mais tarde naquela noite, embora seu interesse fosse diferente para cada uma das duas. Pareceu contar mais sobre si mesmo do que ela precisava saber, mas de forma alguma ela o atrapalharia. O pensamento não passou por sua cabeça. Em poucos minutos, já estavam papeando em sua varanda. Ingrid, a garota estudiosa e Nate, o forasteiro desamparado. Disse que viera de Connecticut num intercâmbio e mais algumas coisas sobre si mesmo.

Ele a chamou para uma caminhada e ela aceitou, sem pestanejar, coisa imprudente que não faria normalmente. Mas havia algo em Nate, em sua postura, até mesmo no seu cheiro, que a fazia se sentir protegida.

Foi quando as coisas começaram a cair e desabar sobre sua cabeça, fragmentando tudo aquilo que ela chamava de racionalidade. Nate a seduziu, devagar e com muita gentileza, mas estava prestes a beijá-la. Muito antes de ele insinuar o beijo, Ingrid já tinha se entregado ao rapaz e a seu poder de atração. No entanto, momentos antes de seus lábios se tocarem, ele desviou a boca e cravou os dentes em seu ombro, mordendo forte, segurando-a pelos braços.

Desnecessário dizer que ela sacudiu a si mesma para fora da platônica atração que tinha por ele e surtou.

Ele a mordera!

E de verdade! Ela podia sentir o sangue escorrendo por seu ombro, mas não virava o rosto para olhar. Estava com os olhos vidrados no rapaz, para quem brandia punhos e a quem esmurrava, insultando-o. Ele se afastou, pedindo desculpas inaceitáveis e sem o menor sentimento de culpa. Ele se afastou e Ingrid, furiosa, confusa e abalada, voltou para casa.

Sua tarde, a qual ela já esperava que fosse difícil, foi insuportável, mas muito diferente do que ela esperava.

A mordida em seu ombro desatou a coçar debaixo do curativo improvisado que fizera. Tentando explicar para si mesma, ela raciocinou que deveria ser normal, ou algum tipo de inflamação, no pior dos casos. Não haveria problema algum. Ele jamais contaria isso para ninguém e fingiria que essa tarde jamais existira.

Mas a mordida não parou de coçar. Coçava mais e mais. Aos poucos ela foi cedendo e esfregando o local por cima curativo. E começou a fazer isso mais freqüentemente. Até o ponto em que não agüentou mais e arrancou o curativo para cravar as unhas na própria pele, enlouquecida com a coceira.

Surpreendeu-se outra vez naquele dia, ao ver que debaixo do curativo, não havia ferida nenhuma, nem mancha, nem sinal de qualquer lesão. Completamente limpa.

Esse foi o marco. Ingrid começou a sentir-se estranha. Sentia que caminhava diferente, que andava diferente, agora perambulando pela casa. Encarava-se nos espelhos e via a si mesma, mas algo estava diferente. Seus olhos, sua postura?

Antes de terminar seu auto-questionamento, ela sentiu um cheiro, forte e familiar, bem ali perto. Pelo canto do espelho viu que, logo atrás de si, estava Nate, encostado na parede, com um sorriso orgulhoso no rosto.

3

O cheiro que Ingrid sentia agora poderia ser de qualquer coisa, menos aquele do qual se lembrava de Nate. Ele fedia a suor, urina, fezes, lixo, o quer que fosse, mas era difícil ficar no mesmo cômodo que ele com esse miasma que ele exalava agora. O cheiro do qual ela se lembrava era nostálgico, como um bom e velho cobertor grosso, com um cheiro forte e um pouco amargo.

Nate abriu o casaco do indigente que roubara e o tirou, procurando aonde deixá-lo. Apenas um olhar de esguelha para a expressão de Ingrid e ele notou que o cheiro não a agradava. Pior ainda, poderia chamar atenção de seus familiares. Abriu uma pequena brecha na janela e deixou-o cair para fora. Livraria-se daquilo depois. Ainda com a janela aberta, apressou-se e abriu o zíper da bermuda e baixou-a duma só vez. Ingrid virou o rosto imediatamente, sentindo suas bochechas corarem, fixando o olhar na tela de seu computador, que ,desligada, refletia o rapaz, nu, de costas, atirando a bermuda pela janela. Ele fechou-a novamente e voltou o rosto para Ingrid, ainda recusando-se a olhar.

— Quem deveria ter vergonha sou eu. – constatou. A morena chegou a abrir a boca para rebater, mas achou melhor ficar em silêncio. Ele continuou, sentando-se em sua cama. – Pode me conseguir uma calça do seu irmão pra eu vestir?

Ela levantou da cadeira, incrédula e virou-se para ele. Ele estava de costas, sentado à beira da cama, esperando calmamente.

— Você é louco? – indagou, tentando manter a voz um sussurro. – Como aparece aqui a essa hora, pela minha janela, com essas roupas fedidas?

Ele olhou por cima do ombro, com um meio sorriso.

— Da próxima vez eu bato na porta da frente, pelado.

Ingrid engoliu em seco e passou as mãos pelos pretos cabelos ondulados.

—Você prometeu que ia me dar respostas! Eu fiz a ligação que você pediu!

— E você quer com calça ou sem calça? – mais uma vez, ele sorrira por cima do ombro e Ingrid se calou de vez, tocando a maçaneta da porta e abrindo-a em silêncio.

— Fique embaixo da cama, se alguém entrar aqui e vir você... – ela orientou, mas algo a dizia que ele não a levaria em consideração.

Saiu pelo corredor acarpetado, seus pés sem fazer ruído, até a porta ao lado. O quarto de Terrance era, ela gostava de comparar, como um quarto de “garoto universitário de cinema estereotipado”. Ao abrir a porta, ela viu roupas, calçados, papéis escolares e até embalagens de comida pelo chão. Numa cama no meio do quarto, ele estava deitado, dormindo já um profundo sono, esgotado dos treinos da equipe de basquete escolar. Caminhando por cima das roupas, no escuro do quarto do irmão, ela correu o olhar a procura de algum jeans que estivesse à mão. Foram necessários poucos segundos para que ela se tocasse que estava pisando em um. Apressada, ele o pegou nos braços e voltou a passos largos para seu quarto. No corredor, topou com sua mãe, que inocentemente fez um comentário que a fez travar o ar dos pulmões.

— Filha, ponha sua roupa suja pra lavar, não deixe lá pelo quarto. Lá dentro está um cheiro...

Ela quase correu até sua porta e a abriu rapidamente, batendo-a as suas costas. O quarto estava vazio a princípio, mas logo ela notou um braço se esticando de debaixo da cama, e Nate rastejando para fora. Ela passou a chave na porta de seu quarto e atirou-lhe a calça, tentando ignorar o fato de um homem extremamente atraente estar nu em seu quarto. Lutou bravamente para controlar seu olhar e mantê-lo acima da linha da cintura dele, enquanto o via se vestir.

— Você... De onde você veio? – perguntou, encostando as costas contra a porta.

— Tem certeza que quer começar por essa pergunta? – ele abotoou a calça, frouxa e larga, pendurada na linha de sua cintura.

— Sim, tenho! – firmou, decidida.

Nate ergueu as sobrancelhas e massageou o pescoço, olhando pelo quarto da moça, tomando nota mental de seus pertences como um passatempo.

— Fugi da delegacia.

Nate se surpreendeu honestamente, pois esperava uma contestação imediata por parte da moça, que permaneceu em silêncio por um longo tempo.

— Então é verdade...? Você é o assassino? Matou o cara da locadora? – ela ouvira os boatos. Não quisera acreditar a princípio, mas tudo indicava que...

— Não. Eu não mato gente. Pelo menos, não de propósito. – disse, e para ele soou engraçado. Ingrid, no entanto, estava cada vez mais incrédula.

— Você prometeu que ia me explicar tudo, me dar as respostas que eu queria! Porque eu estou me sentindo tão esquisita? Porque todos os homens da escola pareceram me olhar demais hoje; por que aquele ferimento fechou tão rápido; porque diabos, em primeiro lugar, você me mordeu? Quem é você?

Nate sorriu humilde, mostrando os dentes. Não haveria modo fácil de contá-la. Que se tenha a verdade, então, pensou ele.

— Meu nome é Natanel Brady Hensen. Tenho 20 anos. – ele ergueu o olhar para Ingrid, medindo as palavras que diria pela primeira vez em quase cinco anos. – Eu sou um lobisomem.

Os olhos de Ingrid piscaram repetidas vezes enquanto ela continuava encostada na porta, em absoluto silêncio. O único abajur aceso de seu quarto dava ao lugar um aspecto tranqüilo e quente, com a cúpula amarela distribuindo a luz de forma igual pelo espaço. O rosto de Nate, semi iluminado, estava sério agora, diferente do comum. Tinha o cenho franzido e muitos pensamentos na cabeça. Novamente, não sabia o que esperar de Ingrid, mais especificamente, de sua reação. Talvez estivesse esperando uma risada histérica seguida de negações irracionais, mas ela abaixou a cabeça, movendo os lábios, parecendo falar consigo mesma.

— O que você quer dizer com isso, Natanael? – perguntou, um tom choroso na voz.

Os cabelos negros lhe caíam na frente do rosto e com a pouca luz era impossível vê-la. Nate ouviu uma fungada e pôs uma mão na cintura, outra pelos cabelos.

— Por favor. – ele fez uma pausa, tomando cuidado com suas palavras. A moça estava chorando. – Me chama de Nate. E eu não sei se você realmente deveria saber disso tudo agora.

Ingrid sacudiu a cabeça, passando as mãos pelo rosto ainda oculto.

— Eu quero saber. Me explica.

Ela não sabia por que chorava. Mas sentia-se vulnerável, ferida, confusa e desamparada.

Nate respirou fundo, pesando se deveria mesmo entregar o que ela precisava, agora que parecia à beira de um penhasco emocional. Começava a se perguntar se havia feito bem em escolhê-la. Só restava descobrir.

—Lobisomem, como em licantropo... Homem lobo. Você conhece folclores, filmes, lendas. – respondeu metodicamente. Ele próprio nunca havia colocado dessa forma e parecia difícil de acreditar.

Novamente ela permaneceu em silêncio por um tempo. Quando falou, a voz saiu melosa.

— E você quer que eu acredite nisso? Que você se transforma num homem-lobo na lua cheia? – ela sacudiu a cabeça de novo. – Você é maluco! Sai do meu quarto, some daqui! Vou chamar a polícia!

Ela ergueu o rosto enquanto falava mais alto, decidida a encará-lo. Ele a seduzira e a mordera, como um louco. Horas depois na mesma tarde ela começou a sentir mudanças no corpo, dentre elas a recuperação acelerada de ferimentos; que podia sentir cheiros mais fortes agora, capaz de saber diferenciar o odor de seus familiares. Quando se via no espelho, reconhecia seu rosto, seu corpo, mas algo estava diferente, era como se visse a si mesma, no corpo de outra pessoa. Na escola, praticamente todos os homens pelos quais ela passara, viraram os pescoços para olhá-la um pouco mais. Pela primeira vez em sua vida escolar, ela recebera cantadas no corredor, as quais ignorou piamente.

Mas quando tentou encarar Nate, procurou-o pelo quarto com o olhar, mas ali onde ele estivera em pé, apenas a calça jeans de seu irmão jazia solta no chão. Foi quando viu, bem a seus pés, a fuça preta de um imenso lobo de olhos amarelados, com o pescoço levemente esticado, fitando-a com tanta intensidade que ela não conseguiu gritar com o susto.

Nate, o lobo, soltou um curto ganido, baixando as orelhas para trás. Usando o focinho, tocou a mão de Ingrid. Ela a puxou imediatamente, sentindo o coração bombardeado em seu peito. O lobo levantou-se e espreguiçou-se, esticando as patas traseiras e jogando o pescoço para trás. Mesmo sobre as quatro patas, o rapaz ainda pensava da mesma forma e concluiu que talvez a deixasse mais calma se agisse de uma forma canina amigável.

Num salto, deitou-se na cama dela, depois de girar em torno do próprio corpo e repousou a cabeça sobre as patas.

Ingrid passou as pequenas mãos pelos cabelos, fechando os olhos. Não podia acreditar no que acabara de ver. Um lobo em seu quarto... E era Nate. Como era possível... Ela assustou-se quando viu, novamente homem, Nate, vestindo a calça rapidamente.

— Desculpa se te assustei, mas eu não sabia como te fazer acreditar. – disse, sem querer olhá-la no rosto e ver sua expressão de perplexidade. - Acho que foi o melhor que eu tinha pra fazer, certo?

—Como isso é possível? O quê foi isso que eu acabei de ver? Você... Você me drogou, me deu alguma coisa... – ela negava, tentando racionalizar, e Natanael não podia culpá-la. Ela foi até a janela e a abriu, respirando o ar gelado da noite por algum tempo, voltando a falar. – Quando você me mordeu... Foi isso, quando você me mordeu, me deu algum alucinógeno...

— Pára com isso. – ele projetou-se na direção dela, cobrindo o espaço entre eles com um só passo. Tapou-lhe a boca com uma mão, e puxou-a pela cintura com outra. Estavam colados corpo a corpo, olho no olho, com o vento frio da noite soprando suas peles pouco vestidas, arrepiando-os.

Ingrid calou-se sem reação. Nem mesmo pensamentos passavam por sua cabeça nesse momento e tudo o que ela via era a profundidade do olhar do homem que a tinha agora nos braços com tanta certeza de seu aperto, de sua força, que ela sequer cogitava se afastar.

— Olhe pra mim. E diga que acredita em mim. Mas diga a verdade, porque se eu vir hesitação nos seus olhos eu salto pra fora dessa janela e você nunca mais vai me ver, nem ter as respostas que você quer.

Os dois pares de olhos castanhos se encaravam. As sobrancelhas de Nate estavam arqueadas sobre os seus, dando-lhe uma expressão quase agressiva. Já os de Ingrid vibraram, tremendo sem certeza de para onde olhar, sem saber o que dizer.

Lentamente, ele soltou a mão que cobria a boca da moça e ela arfou, voltando a respirar com fulgor.

— Você acredita em mim? – ele perguntou de novo, cerrando o olhar e apertando-a mais forte contra seu corpo. Ela própria não sabia o que responder, mas ele exigira uma resposta. Ali abraçada a Nate, era como se a vontade dele fosse maior e mais gritante que sua própria consciência.

— Eu... Eu não sei o que acreditar. – disse, tentando não hesitar, nem afastar o olhar.

Ele assentiu e afrouxou o abraço, mas sem soltá-la. Com o braço livre, fechou a janela atrás deles, sem mover o olhar por sequer um segundo.

— Bom. Já é um começo. Vou te dizer o que vamos fazer: finja que acredita, que isso é um sonho, e que no fim da noite você vai acordar. Pergunte tudo o que quiser, como se fosse só de curiosidade. Assim fica mais fácil pra você?

Ela respirou profundamente, já se sentindo mais regulada, mais controlada. De repente já não tinha mais vontade de chorar, nem sentia o coração batendo tão forte que seu peito parecia ceder a cada momento. Por fim, ela fez que sim com a cabeça.

— Ótimo. – Nate sorriu de lado, segurando-a com delicadeza pelo braço e sentando-a na cama. Ele afastou-se alguns passos para trás e deixou-se cair na cadeira giratória próxima a seu computador.

Por um tempo, ela não o olhou, parecendo sondar o próprio quarto, acostumando-se com a idéia de sonho que ele propusera. Ele não a apressou.

— Então... – a voz saiu rouca, e ela pigarreou, recomeçando. – Então... Lobisomem... Como funciona isso? É... É como nos filmes, com a lua cheia e tal?

Nate sorriu, apoiando o rosto com a mão.

— Não. Quer dizer, um pouco. Nós ficamos um pouco mais agitados à Lua Cheia, mas podemos mudar de forma quando queremos. Você acabou de me ver lobo.

— Ah... – ela fez que sim com a cabeça, com se dissesse pra si mesma: É óbvio. Digeriu a resposta. – E existem muitos de vocês?

— Bom... Depende do local, na Europa existem muitos mais do que aqui.

— E... Como... Como você se tornou um? – ela continuava na defensiva, fazendo as perguntas com cuidado.

—Calma... Nos filmes as pessoas se tornam lobisomens, mas na realidade não é bem assim. Um lobisomem só pode ser descendente de outro lobisomem.

— Então... Seu pai era um lobisomem? – ela tentou durante um bom tempo, mas a idéia ainda era rejeitada por sua cabeça. Ela acabou soltando um risinho, ridicularizando a si mesma por estar fazendo esse jogo.

Nate logo percebeu que ela estava voltando à racionalidade e que as coisas poderiam acabar por ali.

— Continue, você está indo bem. – Disse, e ela ergueu a cabeça novamente, cruzando as pernas sobre a cama, pondo os cabelos para trás da orelha. – E não, meu pai era um cara normal, mas era portador. Na verdade nós não sabemos muito da hereditariedade. Raramente se manifesta, normalmente não.

Ingrid calou-se, tentando ordenar os pensamentos que rodopiavam por sua cabeça. Ainda havia uma voz bradando em sua mente, forçando-a a desacreditar no que o rapaz vinha lhe dizendo, todo aquele folclore e coisas de contos de fadas, loucuras. A outra, em contraponto, usava argumentos incontestáveis, baseados no que ela acabara de presenciar com Nate, e com seu próprio corpo ao longo dos dias, desde a mordida.

—E é como nos filmes? A parte da mordida?

Nate sorriu, balançando a cabeça negativamente.

— Não sei que tipo de filmes você viu então não posso dizer para esquecer tudo o que viu... Alguns acertam em algumas partes, mas a maioria deles nos banaliza. A mordida é simbólica. É um catalisador.

— Catalisador de quê?

— Da transformação. Como eu disse, é simbólica. Sendo lobisomem, a pessoa vai sentir a coisa manifestar mais cedo ou mais tarde. A mordida só faz com que seja mais cedo. Mesmo se eu não tivesse te mordido, e sinto muito por ter mordido, - agora Ingrid pôde notar verdade no pedido de desculpas. - talvez semana que vem, talvez daqui a dez anos o sangue tivesse manifestado.

Ela ficou em silêncio, passando as pontas dos dedos pelo ombro onde tinha sido mordida.

— Então eu... Você me... Eu vou... – as palavras simplesmente não saíam. Mesmo que o inexplicável estivesse dançando diante de seus olhos, as vozes de sua cabeça não conseguiam aceitar a idéia de que dali a um tempo ela se tornaria um monstro.

— Não. Você não é uma de nós. – disse, num tom um tanto sombrio, com uma voz calculada. Tinhas as mãos cruzadas na frente do peito, com o rosto meio escuro, meio iluminado.

Ela pôde jurar que por um momento, no lugar dos olhos castanhos do rapaz, viu os dois círculos amarelados, os mesmos olhos do lobo preto, mas logo afastou a possibilidade. Era apenas fruto de sua imaginação. Passado esse susto, ela deixou de tocar o próprio ombro, confusa com o que acabara de ouvir.

— Mas você me mordeu... Eu vi o ferimento se fechar... O meu olfato... Eu sinto cheiro da minha família em todo lugar, nas roupas, no carro, no ar...

Nate concordou com a cabeça, já esperando ouvir esses argumentos.

— Mas você é diferente, Ingrid. Você tem o sangue fraco, é como se fosse só metade loba.

Ela afundou o rosto nas mãos, tentando segurar um grito de indignação.

— Isso tudo é demais pra mim... Por que isso tá acontecendo comigo? Eu sou normal, tenho uma família normal... – ela falava para si mesma, abafando as palavras com as mãos na frente do rosto.

— Você é o que nós chamamos de Prima. Pode fazer exatamente as mesmas coisas que eu, exceto se transformar... – ele continuou, ignorando o fato de ela falar sozinha.

— E o que você consegue fazer, por exemplo? – perguntou, aumentando um pouco o tom de voz. Nate sentiu uma grande dose de desdém na pergunta, mas relevou.

— Regeneração. – ele começou, contando nos dedos. – Sentidos hipersensíveis. Capacidades físicas superiores. Atração magnética.

Ela ficou em silêncio, estudando a expressão e o modo de falar de Nate. Era tão natural que, mesmo que ela quisesse duvidar, não conseguiria. Ele podia apenas ser louco por acreditar em tantas coisas fantasiosas, mas então ela também o seria. A imagem do lobo preto deitado em sua cama simplesmente não saía de sua cabeça.

— Atração magnética? – perguntou ela. Convenceu-se a continuar no sonho que ele propusera. Talvez ajudasse a silenciar as vozes da razão que discutiam em sua cabeça.

— É. A partir do momento em que mudamos, nossa pele muda de aspecto. Libera uma substância que atrai as pessoas. Por isso tinha tantos homens te olhando hoje. Eles não sabem porquê e nunca vão saber. Só vão te querer.

— Não fala assim! – ela arremessou sua almofada em formato de tartaruga sobre Nate. Ele riu e pegou a pelúcia do chão, analisando-a.

Ingrid mordeu o lábio, tentando decidir se faria a pergunta que queria fazer. Poderia não gostar da resposta, mas ela constatou que isso não importava mais. A conversa já tinha tomado um rumo em que o medo das perguntas e de suas respostas já deveria ser deixado de lado.

—Então é por isso que eu... me sinto atraída por você?

Nate parou de movimentar a pelúcia pelas mãos, fixando o olhar no rosto de Ingrid. Ela conseguiu se disciplinar o suficiente para não desviar seu olhar inseguro do olhar fuzilante do rapaz.

— É. É por isso. Mas não se preocupe, vai passar. Logo você vai ficar imune a esse feromônios e vai poder se concentrar em me ajudar. Do contrário você ia enlouquecer quando visse os outros.

Ingrid teve sua atenção atraída, inevitavelmente.

— Outros?

Nate sorriu.

— É. Agora precisamos falar sobre mim...

Ingrid ficou em silêncio. Seu coração, controlado até alguns momentos atrás, agora começava a palpitar. O que este estranho homem seminu em seu quarto teria a mais para lhe contar?

— Mas antes, eu queria comer alguma coisa. Eu poderia ir lá embaixo fazer um sanduíche para mim, mas acho que você prefere ir no meu lugar, né? – insinuou, caminhando até a porta e estendendo o braço para a maçaneta.

Ingrid saltou da cama e deu-lhe um tapa no braço, afastando-o da porta com um meio sorriso. O rapaz sabia diverti-la. Ela colocou a mão sobre o peito de Nate e o empurrou para trás. Ele se afastou, sorrindo.

— Espere aqui! – disse ela, censurando-o num sussurro ríspido, abrindo a porta com cuidado.

— Também estou com sede... – disse ele, mas a morena já havia saído.

Ingrid seguiu pelo corredor acarpetado a passos macios e ouviu sua mãe já se preparando para dormir, na porta em frente ao quarto de seu irmão. Lá em baixo, podia ouvir misturado ao ruído do temporal o som da televisão que seu pai assistia, matando o tempo. Depois de descer as escadas, passou pela sala por trás do sofá, sem ser percebida. Como ela suspeitava, agora com seus novos “artifícios” ela conseguia ser muito mais silenciosa do que normalmente seria. Mesmo que dali a algumas semanas ou meses ela decidisse desacreditar em tudo que Nate a dissera, as provas irrefutáveis ainda estariam com ela. Dentro dela, com suas mudanças.

O chão frio da cozinha a despertou de seus devaneios e ela tentou fazer tudo sem ter de acender a luz. Achou divertido testar, agora que tinha muito mais habilidade, sua noção de espaço e controle de movimentos. Os pães, a faca e a geléia, todos foram pegos com facilidade, e em poucos minutos tinha feito dois sanduíches. Ainda que no escuro, ela sabia que não havia sujado nada. A confiança que sentia em seu controle era maravilhosa e para uma moça que nunca fora muito segura, era indescritível.

Novamente em seu quarto, encontrou Nate de pé ao lado de sua mesa de cabeceira, folheando um livro.

— Você lê muito? – perguntou ele, sem levantar o olhar.

Ela pôs o prato com os dois sanduíches sobre a mesa do computador e recostou sobre ela.

— Não tanto quanto eu queria, não tenho tanto tempo. O que você considera muito?

O rapaz fechou o livro e o colocou de volta no lugar, da forma como o achara. Um costume que adquirira ao longo dos anos, de tanto invadir casas.

— Uns 15 livros por ano.

Ingrid soltou uma risadinha e jogou o cabelo por cima do ombro. Qualquer outro rapaz teria se maravilhado com a graça desse movimento, mas Nate o tratou com indiferença.

— Eu leio bem mais que isso. Uns 30 talvez.

Nate jogou-se sobre a cama e cruzou as pernas, mexendo nos cabelos. A moça veio gentilmente até ele e lhe entregou o prato com os sanduíches. Ele comeu devagar, processando com calma em sua cabeça como faria para contá-la.

Ingrid o observou com ansiedade, mas controlou-se e manteve o silêncio. Estava curiosa e preocupada com o quer que ele fosse dizer, mas não voltaria atrás agora. Se seria uma noite de histórias loucas, ela ouviria todas elas.

— Vamos tentar assim: o que você diria sobre eu estar sendo caçado por outros como eu?

— Supondo que eu acreditasse... – ela ponderou. – Iria perguntar por quê.

Ele esfregou as mãos, balançando a cabeça positivamente.

— E o que mais iria querer saber?

— Quem são esses outros e... – ela se lembrou do assassinato na rua de Adam. – Do que eles seriam capazes de fazer.

— É complicado... Mas eles acreditam que eu fiz algo de que não sou culpado e querem... Bem, querem me matar.

Ingrid engoliu em seco.

— Por isso você fugiu pra cá?

— Eu já fugi para vários lugares. Faz mais de 6 meses que estou tentando despistá-los, mas não consigo simplesmente. Eles são... excepcionais.

— Então... Eles sabem que você está aqui? Vêm te pegar?

— Eu achava que não, até ter sido preso. No interrogatório eu vi uma foto do homem que foi morto na locadora e notei uma mordida – ele levantou o pulso e mostrou onde fora. – aqui. Aí eu soube que eles estavam aqui. Um deles, o mais agressivo, tem um tipo de TOC¹, e sempre morde as vítimas no pulso. Ele se chama Aaron.

— Não entendi... Porque ele matou o homem da locadora?

— Para assustar Adam. Deixá-lo acuado para alguns dias depois matá-lo também.

Ingrid calou-se subitamente. Não sabia, não tinha como saber que as coisas eram tão perigosas quanto se revelavam agora. Adam, seu amigo, que sequer conhecia Nate, não deveria estar envolvido nisso.

— Porque o Adam? O que ele tem a ver com tudo isso, porque eu tive que ligar pra ele afinal?

Nate levantou as palmas das mãos para Ingrid, pedindo-a calma. Se deixasse a conversa perder o ritmo, ela acabaria perdendo a disposição de acreditar e ele seria expulso pela janela antes de perceber.

— Eu estou na cidade há 3 semanas. Escondido em pequenos hotéis, só caminhando, observando, tudo sem ser notado, sem trazer atenção. Provavelmente, Aaron esteve me seguindo... E notou minha atenção no Adam. Percebeu que eu iria precisar dele, e agora quer tirá-lo do caminho.

— E por que você precisaria do Adam? Esses caras são tão radicais a ponto de matar outras pessoas pra chegar até você?

— São. Sem dúvida. Alguns mais, outros menos. É Aaron que está atrás de mim, não podia ser pior.

— Porque você precisa do Adam?

— Porque eu não vou mais fugir de cidade em cidade, estado em estado. Eu vou enfrentá-los. E Adam vai me ajudar.

— E como você acha que ele vai conseguir te ajudar contra um bando de lobisomens?

— Alcatéia. – respondeu ele.

— O quê?!

— Bando não, alcatéia.

— Ugh! – Ingrid gemeu de raiva e bateu os pulsos no colo. – Responde, Nate, você quer que o Adam morra?

—Óbvio que não, ele é um dos únicos na região que pode me ajudar. – Ingrid não notou no exato momento, porém, mais tarde, quando se lembrasse da conversa, ficaria particularmente confusa por ele ter dito “um dos únicos” e não “único”. – Você não entendeu, eles vão me matar, Ingrid. E de qualquer forma, depois de mim, iriam chegar até você e ao Adam.

— Por que o Adam?!

— Vai ficar fácil farejá-lo quando ele mudar. Porque ele tem sangue de lobo também.

Ingrid sentiu as palavras paradas em sua garganta, forçando-as a sair, mas sem conseguir.

— Como... Como eu? – perguntou, insegura, com medo da resposta que ouviria.

— Não. Como eu. Adam é um de nós.

Ingrid não tinha palavras para se expressar. Nem sequer parecia sentir nada, o que acometia a moça agora era uma coisa sem nome. Como era possível que em apenas dois dias, uma pessoa entrasse em sua vida e simplesmente a mudasse radicalmente, sem chance de mudar de volta? E como essa mudança, arriscada para ela própria, poderia trazer tanta ameaça para seus parentes e seu amigo?

E o som de um uivo do lado de fora penetrou pelas paredes do quarto, pela janela fechada, engolindo o ruído da chuva e invadindo os ouvidos de Ingrid, fazendo-a sentir estremecer, congelar por dentro.

Nate franziu o cenho, mudando subitamente de uma expressão indiferente e uma postura relaxada para uma face dura, rígida e uma postura eriçada. Ele levantou-se e aproximou-se da janela, enquanto Ingrid permanecia sentada na cadeira, com os pulmões cheios de ar, sem ousar respirar. Ele levantou a janela e prostrou o torso para fora, jogando o rosto para o alto e fungando algumas vezes. O cheiro de chuva, dos odores doces do quarto da moça, e aqueles próprios com os quais ele havia se sujado ao usar as roupas do mendigo adentraram suas narinas, mas ele os ignorou e continuou a tentar farejar. O vento soprava bem, e a seu favor, mas não trazia nenhum odor com o qual devesse se preocupar. Ele recolheu-se para dentro.

Ingrid tinha o rosto afundando nas mãos, e parecia chorar em silêncio. O rapaz não se preocupou com sensibilidade:

— Isso significa que você acredita?

Ela não respondeu. Na verdade, pareceu nem mesmo ouvir.

— Não precisa ter medo, o uivo foi longe. É bom você se acostumar, eles vão uivar toda noite até me encontrarem.

Novamente, sem reação por parte da moça.

— Quando vamos falar com ele? – ela perguntou com a voz abafada por entre as mãos depois de quase um minuto inteiro.

Nate não respondeu a princípio, pois ouvia passos atravessando o corredor do outro lado da porta.

— Boa noite, filha. – disse a voz embargada do pai.

Ingrid ergueu a cabeça num susto e olhou pedindo auxílio para Nate, que indicou a porta com a cabeça.

— Boa noite, papai. – respondeu ela. A voz saiu chorosa, mas o pai não devia tê-la ouvido. Os passos foram se afastando.

—Vamos fazer uma pausa Ingrid. Vá lavar o rosto, respirar fundo. Eu espero.

4

Keith teria tropeçado no corpo do indigente ao entrar no beco, se não tivesse uma visão excepcional. Collin, mancando logo a seu lado, não teve a mesma astúcia e parou subitamente ao se sentir pisar sobre a mão do homem. O peso de toda sua massa corporal quebrou dois dedos do inconsciente sem-teto. Keith o olhou de lado, em reprovação, mas logo voltou os olhos para dentro do beco, ziguezagueando sua atenção pelo local. Olhou rapidamente sobre o entulho, a caixa de papelão e tudo o mais que o mendigo houvera anunciado como seu. O beco era escuro e a luz do poste mais próximo vinha da rua, detrás dos dois. Suas sombras se projetavam compridas pelo local, a de Collin ainda mais imponente.

— E aí? – perguntou o grandalhão, com as mãos nos bolsos do pesado casaco, cutucando o companheiro de buscas com o cotovelo. Collin ainda tinha os cabelos presos no rabo de cavalo, molhados, pesados sobre o rosto.

Keith se sentiu incomodado, mas ignorou a pressa do companheiro. Seu olfato não lhe dizia nada ali.

Os dois haviam seguido o rastro do odor de Nate desde o quarteirão da delegacia até essa rua, cada vez mais fraco pela distância e pela forte chuva. O perfume natural de uma área urbana também atrapalhava a busca, mesmo sendo uma pequena cidade como Roule County.

— Perdemos o rastro aqui.

— É, imaginei... – bufou Collin, apoiando as costas na saída do beco. – Então, o que você vê?

Keith fungou. Seu olhar de águia percorreu o lugar, tomando conhecimento de todos os marcos e objetos ali, ordenando os pensamentos numa velocidade assombrosa. Alguns poucos gênios ao redor do mundo teriam uma capacidade de raciocínio tão aguçada. A resposta veio quase imediatamente após a pergunta:

— Nate veio até aqui em quatro patas, ficou sobre duas pernas, brigou com esse homem caído – Keith indicou o mendigo com a cabeça. – e foi um pouco ferido, nada de mais. Depois o desacordou com um golpe na cabeça. Pegou algumas roupas dele. Fugiu.

Collin estalou a língua.

Algo me diz que ele não pretende descansar esta noite. E algo me diz que ele já sabe que estamos aqui. – disse, com um meio sorriso.

Ele usava muito esse termo, “algo”, para se referir a sua intuição. Bom, o que seria uma intuição para qualquer outro, para ele era como um sexto sentido. Ele próprio não sabia muito bem como controlar, nem como funcionava, mas de alguma forma seus palpites a respeito de coisas eram sempre certos.

Keith virou-se imediatamente na direção do grandalhão, tão rápido que seu rosto respigou as gotículas de chuva.

— Ele sabe? – perguntou, num tom elevado, não-natural seu. Keith não era do tipo a perder o controle, nem do tipo a fazer perguntas.

— Sabe. Por isso deu um jeito de fugir rapidinho da delegacia.

— E porque você não contou aos outros? – prosseguiu perguntando.

Collin olhou-o um pouco espantado, como se fosse óbvio.

— E como você acha que Aaron iria reagir? Não temos tanta verba assim, e consertar um quatro de hotel inteiro deve sair uma baba. É bom esperarmos para falar com Comp sem que ele possa ouvir.

Keith balançou a cabeça, desta vez desdenhando o companheiro em resposta.

— Pelo jeito você não pensou em como Aaron vai reagir quando descobrir que escondemos isto dele. Você sabe que tudo que ele tem na cabeça ultimamente é rasgar o pescoço de Nate.

Collin torceu o nariz, pois não tinha pensado nisso.

— Deixe pra lá. Diga pra onde você acha que Nate vai. – prosseguiu Keith.

—Não sei, sobre isso não senti nenhum algo. – Collin se divertia chamando sua intuição como se fosse uma coisa concreta e sempre presente. – Mas acho que devemos nos recolher esta noite.

— Explique. – pediu Keith, discordando.

— Se o encontrarmos, o que você pretende fazer? Atacar? Olhe pro céu cara, é a Meia Lua. A lua dele.

Keith não precisou olhar para o céu para saber a fase da lua, e mesmo que olhasse as nuvens da tempestade o impediriam. Ele sabia exatamente como a lua estava, sem precisar olhar para ela. Ele a sentia, todos eles a sentiam.

— Então vamos voltar. Precisamos encontrar um lugar seguro para dizer ao Aaron.

5

Nate abriu novamente a janela de Ingrid, expondo-se seminu para o frio da noite lá fora. Ingrid tinha ido pensar um pouco sozinha, levar a louça que haviam sujado de volta para o cozinha. Todos os parentes dela já haviam ido dormir, inclusive o pai. As sobrancelhas de Nate estavam quase unidas sob sua testa fincada. Ele debruçou-se no peitoril tentando sentir algum cheiro alarmante, mas não havia com o que se preocupar, pelo menos nos quarteirões circundantes, pelo menos por hora.

Estava tentando planejar seu próximo passo. Tinha tudo planejado quando chegou na cidade três semanas atrás. Encontrou Adam, talvez o único rastro de sangue lupino num raio de 500 Km e quando estava prestes a se aproximar dele, tudo acontecera tão rápido...

A porta do quarto abriu e fechou rapidamente, Ingrid entrando silenciosamente no cômodo iluminada por um simples abajur. Nate não se virou. Estava ponderando seu próximo passo e como ele afetaria a Prima. Novamente, resolveu dar o passo e arcar com as conseqüências, fossem quais fossem.

— Posso continuar sendo sincero, Ingrid? – perguntou, vendo um velho sedan prata passando pela rua, com crianças brincando no banco de trás.

A resposta da moça demorou, mas por fim ela assentiu, sem dizer nada, sentando-se na cama.

Nate prosseguiu, tomando o silêncio dela como permissão:

— É aqui que fica difícil. Acabou a nossa brincadeirinha de sonho. Se ficou mais fácil pra você entender, ótimo. Se você ainda vai seguir sua racionalidade, azar o seu, porque continua sendo tudo verda...

— Eu acredito. Eu sei que é tudo verdade. – Disse Ingrid, com palavras cuidadosamente escolhidas. Agora que ela mesma dissera, percebeu com um choque já não poderia mais voltar atrás. Todo aquele mundo louco de possibilidades cinematográficas e monstros – aos quais ela era aparentada – era verdade.

Nate se virou, um tanto aliviado, mas preocupado demais para demonstrar. Apoiou os cotovelos na janela.

— Agora eu vou dizer tudo o que está acontecendo, e porque esses outros lobisomens querem me matar.

Ela respirou fundo, mas tudo parecia diferente para ela agora, todo o rumo da conversa. Ela acreditava de verdade agora, e não tinha mais tanto medo. Confiava em Nate e sabia que ele a protegeria. E então Natanael começou a falar.

6

Éramos quatro. Eu, Aaron, Keith e Collin. Aaron era o mais novo, o omega da alcatéia. É um lobo muito irresponsável, mas não é culpa dele. Somos parte animal, parte homem e parece que é o lobo que fala mais alto dentro dele. Ele é baixinho e tem muito poucos músculos, mas quando a fúria corria no sangue, era mais forte que todos. Keith... Bem, Keith era o mais esquisito de todos nós, é um pouco frio demais para ser humano e passional de menos para ser lobisomem, mas tem sentidos que pairam o sobrenatural... Ele vê mais distante, ouve mais longe, e a mente parece que nunca deixa de trabalhar, ele está sempre pensando a mil. Collin era como o nosso relações-públicas, o nosso porta-voz. Ele é grandalhão e desajeitado, mas é muito bom com as pessoas e sente bem lidando com elas, porque sempre sabe o que dizer. E ele gosta especialmente das mulheres, é um namorador. E além dos três, havia eu.

Eu era o alfa, o líder e nós quatro funcionávamos.

O Alfa de uma alcatéia tem algumas vantagens sobre o resto dos lobos, é como com os lobos de verdade. Nós temos direito de comer primeiro e os outros têm de esperar até terminar; ficar com o melhor lugar para dormir, cortejar a fêmea primeiro, além de tomarmos qualquer decisão necessária. E quando somos desobedecidos, é uma situação tensa e perigosa. O desafiante e o Alfa brigam, disputam. Quem vencer é o líder.

Eu fui Alfa da minha alcatéia durante todo o tempo, desde o começo. Nunca fui desafiado, nenhum deles via qualquer problema na minha liderança, estavam contentes com as coisas do jeito como estavam. Keith era nosso trunfo, sempre planejava algo, sempre percebia aquele detalhe que todos deixavam escapar. Aaron era nosso batedor, indo sempre na frente, contando o que tinha visto e limpando o caminho do que quer que fosse atrapalhar. E Collin era nosso diplomata, nossa voz com qualquer um que nos incomodasse, ou que nos interessasse. Eu era a espinha dorsal da alcatéia, o palavra final, a sensatez quando o sangue de todos estava fervendo. Não é fácil, nem seguro, controlar o ânimo de lobisomens, principalmente quando é Lua Cheia, quando ficamos mais irritadiços.

Até que numa das nossas viagens, encontramos um outro lobisomem. Solitário, o que é esquisito pra nossa gente. Sempre vivemos em bando, é como uma família. Eu decidi deixá-lo vir conosco, e decidi se ele se tornaria parte da alcatéia ou não. Por um tempo foi uma maravilha, é perfeito caçar numa alcatéia com cinco de nós. Não sabemos como explicar, mas cinco é o número perfeito para um grupo nosso, nem mais nem menos. E fomos assim, uma alcatéia perfeita por uns 6 meses, durante os quais ele foi só um tipo de convidado, um cara que acolhemos. Mas eu dei boas vindas a esse novo lobisomem que tinha trazido tanta melhora pra nós, tanta prosperidade e o aceitei como parte da alcatéia. E à Meia Lua, época que sempre usávamos pra coisas e eventos importantes, nós o iniciamos de braços abertos e sorrisos no rosto.

Seu nome era Giovanni Compacci.

E durante mais uns três meses continuamos sendo uma alcatéia, cinco lobos em plena forma e sincronia, ótimos. Porém já não tão perfeita. Algo estava diferente em Comp, como o chamávamos. Ele tinha se tornado um tanto rebelde, questionador, lento nas caçadas, desdenhoso com todos os outros. Começou a nos irritar e prejudicar as caças, nós nos ferimos algumas vezes por falhas dele. Até nos metemos em um conflito que eu não quero nem pretendo me lembrar, e por pouco saímos com nossas caudas inteiras. Ele tinha se tornado um fardo.

Eu o tentei pôr no lugar, como sempre, à Meia Lua, numa conversa particular.

Mas ele me questionou e me afrontou e de repente já não era mais o Comp que eu tinha aceito de bom grado, o bom lobisomem que se encaixara perfeitamente entre nós. Era uma raposa traiçoeira de língua afiada, um trapaceiro enganador. Ali, sozinho com ele debaixo da minha Lua, ficou claro que eu estava conhecendo o verdadeiro Giovanni pela primeira vez. Logo nossos egos inflamados se chocaram e estávamos brigando, e feio. Uma briga de lobisomem sempre é feia, é cruel, sanguinolenta e brutal. Mas ele passou dos limites.

Infelizmente, só nós dois estávamos presentes e meus companheiros não viram o que ele fez.

...

Prata.

Não sei como te fazer entender a curto prazo a abominação que é um lobisomem usar prata contra outro... É senso comum que é nosso ponto fraco, mas nem por isso saímos usando uns contra os outros, mesmo que queiramos nos matar. Acho que seria como uma pessoa querer matar a outra com ácido sulfúrico, entende? A dor que nos causa é... Acho que não tem uma palavra na língua humana pra isso. É iktah. Na nossa língua anciã era uma palavra usada pra descrever os espíritos e forças mais escuros e ruins que se conhecia. Hoje nós costumamos descrever a dor da prata assim.

E óbviamente, com a prata, ele me venceu. Na verdade ele quase me matou. Dê uma olhada na cicatriz, é bem aki na lateral da coxa... Do quadril até quase o joelho, um corte aberto gorgolejando sangue enquanto eu praticamente rasgava minhas cordas vocais do berro, do uivo de dor. Mas Giovanni não parou. Ele largou a prata de lado e me surrou, como eu nunca havia sido surrado. Eu me lembro de muito pouco. Estava entorpecido da dor. Ele me deixou inerte no chão, pra morrer, quando eu o vi cravando a faca de prata na própria barriga e se afastar enquanto sangrava perigosamente, chamando pelos outros. Desmaiei.

Quando acordei, a dor ainda estava lá, iktah, e eu acordei berrando, na casa de um estranho. Ele disse que me achou na floresta, quase morto e me pegou.

Ele cuidou de mim e me ajudou a me recuperar, tornei-me seu amigo. É, além da dor que a prata causa, não regeneramos muito bem os ferimentos feitos com ela... Demorei dois meses pra conseguir andar de novo. E Comp começou a me procurar por telefone, pedindo o Anel do Alfa. Este aqui, vê? É o símbolo da minha liderança da alcatéia, mas agora não é símbolo de nada. Ele é um tanto abençoado. Me ajuda a perceber só com um olhar quem tem sangue de lobisomem forte nas veias como Adam, sangue fraco como você, e sangue de humano como toda sua família. E Comp queria esse Anel, dizia que agora ele era o Alfa da alcatéia e que era dele por direito. Eu ouvia os outros do outro lado da linha furiosos comigo por ter usado prata contra Comp no desafio, por ter sido tão covarde e baixo. Comp tem uma língua de cobra. Não sei exatamente a versão que ele contou a Keith, Collin e Aaron, mas sei que os convenceu de que ele me desafiou pela liderança e me venceu. Então com raiva, o ataquei com prata. Ele revidou e eu fugi, envergonhado e me recusando a ficar na Alcatéia.

E eu recusei a entregar-lhe o Anel. Tentei entrar em contato com os outros três para lher explicar exatamente o que aconteceu, mas eles estavam enfurecidos. Não acreditavam no que eu tinha feito e logo já não me atendiam mais.

E as coisas pioraram. Eles me deram Caça.

Isso é quando uma alcatéia decide uma meta, um alvo. Ela passa a deixar de lado tudo que um lobisomem têm de fazer e se torna um time de caçadores, com uma presa a ser abatida, em tempo integral. Eu era essa presa.

O amigo que salvou minha vida me ajudou a fugir por um tempo, até minha perna estar 100% recuperada, e eu fiquei devendo muito a ele. Ainda devo...

Eu tinha uma alcatéia perfeita, com amigos aos quais confiava minha vida. E um cretino a tirou de mim, me deixou a beira da morte e me fez passar por um assassino portador de prata! Ele e meus antigos amigos estão atrás de mim agora. E estão aqui em Roule County.

Eu fugi por 6 meses Ingrid, como uma raposa assustada, mas não quero mais fugir!

Vou fincar as patas no chão e rosnar de volta, lutar! É minha própria alcatéia de que estou falando, e eu ainda os amo, mas não posso deixá-los continuar me caçando. Eu tenho insitintos, tenho honra e quero ser livre.

Eu vou lutar contra a alcatéia e já achei quem vai me ajudar.

7

Os olhos de Nate se tornaram avermelhados conforme ele adentrava na história. Começou com um tom casual, mas logo estava levantando o tom de voz, gesticulando. Ele rosnava sem perceber entre uma sentença e outra, mas Ingrid manteve-se em silêncio. Percebeu que era muito importante para ele. Percebeu que era a primeira vez 6 meses de solidão e de fuga que ele deixava tudo fluir, desabafava. Quando ele mencionou a prata, ela pode sentir na voz a impressão que a dor deixara nele.

Agora, um silêncio diferente se instalara entre os dois. Não era incômodo, era respeitoso da parte de Ingrid, sincero e solidário. Da parte de Nate, era apenas o que parecia ser tristeza, ou profunda angústia.

— Eu ajudo... – ela se levantou e caminhou até ele com cuidado, sem saber se podia violar seu espaço, mas ele não reagiu.

Ele levantou o rosto, num meio sorriso, ainda parecendo afetado pelas lembranças e apoiou as pesadas mãos sobre os ombros da moça, fazendo-a sentir o peso de seus braços.

—Obrigado de verdade. – disse ele e seu olhar agora vulnerável juntou-se ao de Ingrid. Ele estremeceu e torceu para que ele não tivesse sentido.

Ela inclinou o corpo um pouco para frente, sua mente cada vez mais livre de pensamentos, deixando os lábios relaxados.

Ingrid tinha certeza de que Nate iria beijá-la naquele momento, quando uma buzina fez-se ouvir do lado de fora.

Ela se sobressaltou e ficou na ponta dos pés para ver por cima dos ombros de Nate pela janela. Ele permaneceu parado por um tempo, e virou-se, abraçando-a pelos ombros.

— Sua carona chegou.

quarta-feira, 17 de março de 2010

It's Alive!!

Queridas e escassas leitoras (digo no feminino porque sei que só um ou dois cuecas, no máximo, lêem esse pedaço de internet que eu chamo de "meu"). Eu não morri, nem Paragon.

Adam vai muito bem obrigado, e pras fãs dos outros mais malvados, eles também estão ótimos.
O quarto JÁ ESTÁ escrito. Só Deus sabe porque ainda não postei.

Rajannah me cobrou o conto nesse último fim de semana e eu percebei que tava na hora de postar mesmo.

Só que estou no trabalho e por enquanto não posso postar, mas assim que chegar em casa vou despejar aquelas páginas aqui.

Mil beijos.